Sumário


I - Sendo a decisão recorrida um acórdão absolutório do Tribunal da Relação, tirado em recurso de decisão da 1ª instância que condenara o arguido em pena de prisão suspensa na sua execução, não está abrangida pelos casos de irrecorribilidade configurados no art.º 400.º do CPP07, nem em qualquer outra norma legal, pelo que, à primeira vista, tudo aponta para a aplicação da regra geral definida no art.º 399.º, isto é, para a recorribilidade.

II - Parece-nos evidente que não se devem esgrimir argumentos de ordem lógico-sistemática para contrariar essa ideia da recorribilidade, até porque a regra é a da recorribilidade e, portanto, as exclusões devem ser tratadas de forma restritiva quanto aos casos de não recorribilidade.

III - Aos tribunais não cabe discutir o critério legislativo, ou a falta dele, no que respeita às questões que podem ou não chegar ao Supremo Tribunal de Justiça pela via do recurso, umas mais graves que não lhe podem ser colocadas, outras de menor dimensão e que são sujeitas à sua reapreciação. Tal critério, bom ou mau, é definido no âmbito da competência da política legislativa, reservada à Assembleia da República. Para além de que a regra geral é a da recorribilidade. Não é, pois, por esse motivo, de ordem lógico-sistemática, que se pode recusar a recorribilidade da decisão proferida nestes autos pela Relação.

IV - A simples leitura dos art.ºs 399.º e 400.º do CPP permite que existam em simultâneo estas duas situações:

- não é recorrível para o STJ o acórdão da Relação, proferido em recurso, que condenou o arguido numa pena não privativa da liberdade por determinado crime e que, assim, revogou a absolvição da 1ª instância (art.º 400.º, n.º 1, al. e, do CPP);

- é recorrível para o STJ o acórdão da Relação, proferido em recurso, que absolveu o arguido por determinado crime e que, assim, revogou a condenação do mesmo na 1ª instância numa pena não privativa da liberdade (art.ºs 399.º e 400.º, este “a contrario”).

V - Trata-se, porém, da mesma situação, embora em posições invertidas, pois uma é simetricamente o inverso da outra. Apesar da manifesta semelhança, há um tratamento legislativo diferente ao nível da interposição dos recursos.

VI - A primeira situação não é passível de um juízo de inconstitucionalidade. Na verdade, o art.º 32.º, n.º 1, da Constituição dispõe que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso. Mas, o Tribunal Constitucional tem reafirmado em diversos acórdãos e ao longo dos anos que «A Constituição não impõe ao legislador a obrigação de consagrar o direito de recorrer de todo e qualquer acto do juiz, admitindo-se embora, no processo penal, o direito a um duplo grau de jurisdição como decorrência da exigência constitucional do principio da defesa, mas já não o direito a um triplo grau de jurisdição» (v.g. Acs. do TC n.ºs 163/90 de 23-05-1990, 331/02 de 10-07-2002, 377/03 de 15-07-2003, 375/05 de 07-07-2005, 64/06 de 24-01-2006, 530/07 de 29-10-2007).

VII - Assim, o facto do arguido no caso da al. e) do n.º 1 do art.º 400.º do CPP07 não dispor de um terceiro grau de recurso não viola a Constituição, pois o núcleo essencial dos seus direitos de defesa já ficou ressalvado com o duplo grau de jurisdição, para mais num caso em que a decisão final nem sequer o privou nem lhe restringiu o direito à liberdade.

VIII - Contudo, o que já não é tolerável do ponto de vista dos direitos de defesa é que no caso simetricamente oposto a esse, em que ao arguido continua vedado o direito a novo recurso, agora por falta de interesse em agir (pois foi absolvido na segunda instância da acusação, após condenação na 1ª instância em pena não privativa da liberdade), a acusação, isto é, o Ministério Público ou Assistente, possa recorrer.

IX - Nas “duas imagens invertidas”, o arguido não teria direito a interpor recurso em qualquer delas, mas permitir-se-ia ao M.º P.º e ao Assistente, numa delas, um direito que àquele não assiste (o terceiro grau de jurisdição).

X - Criar-se-ia uma desigualdade de armas, desfavorecendo o arguido e beneficiando a acusação.

XI - O tratamento diferente que a lei processual dá aos dois casos de recorribilidade anteriormente indicados, simetricamente opostos e, portanto, indissociáveis, já que não se pode encarar um sem vislumbrar o outro, como num espelho que inverte a imagem da mesma “figura”, coloca o arguido nesta situação absurda: naquele em que é condenado, não lhe é permitido recorrer para obter a sua absolvição, no outro em que é absolvido, a acusação pode recorrer para obter a sua condenação!

XII - Esta diferença de tratamento, em casos que deveriam ser tratados como iguais, é irrazoável e arbitrária, para mais com ofensa do núcleo fundamental do direito de defesa.

XIII - Há ofensa, nesta interpretação das normas de processo penal, dos art.ºs 13.º e 32.º, n.º 1, da Constituição, por violação material dos direitos à igualdade e de defesa (através do recurso) no processo penal.

XIV - Note-se que estamos aqui a reportar-nos a um caso específico, em que a condenação na 1ª instância foi numa pena não privativa de liberdade e que, posteriormente, reapreciada pela Relação em sede de recurso, foi determinada a absolvição do arguido. Pois, se a condenação na 1ª instância fosse em pena privativa de liberdade, nenhuma objecção se poria ao recurso para o STJ por parte da acusação contra o acórdão absolutório da Relação, pois que na situação simetricamente oposta (absolvição na 1ª instância e condenação na Relação em pena privativa da liberdade) o arguido poderia interpor recurso para o STJ (cfr. al. e, a contrario, do n.º 1 do art.º 400.º do CPP).

XV - Concluímos, assim, que é materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 13º e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a interpretação dos artigos 399.º e 400.º do Código de Processo Penal na versão que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, no sentido de que é admissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, interposto pelo Ministério Público ou pelo Assistente, do acórdão do Tribunal da Relação, proferido em recurso, que absolveu o arguido por determinado crime e que, assim, revogou a condenação do mesmo na 1ª instância numa pena não privativa da liberdade.

Decisão



I. No presente processo, em 15 de Outubro de 2010, o relator proferiu a seguinte decisão sumária:


DECISÃO SUMÁRIA


1. A foi julgado no âmbito do processo comum n.º 226/02.2GGLSB do 2ª Juízo Criminal de Sintra e, por sentença proferida em 14 de Janeiro de 2008, foi condenado, pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137.º n.º 1 do Código Penal, na pena de seis meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano.

“B”, demandada civil, foi, por sua vez, condenada a pagar:

- às assistentes C, D e E quantia de € 82.991,64, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até efectivo pagamento, bem como a quantia de € 37.500,00, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a data da prolação da sentença até efectivo e integral pagamento;

- ao demandante F a quantia de € 3.000,00 e de € 125 por mês desde a data do acidente de viação até efectiva entrega do valor do veículo, perfazendo o montante em dívida € 8.125, tudo acrescido de juros de mora à taxa legal desde a data da citação até efectivo pagamento.

- ao “G” a quantia de € 15.917,00 acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até efectivo pagamento.

Inconformados recorreram tanto a demandada civil, como os demandantes e assistentes (estas em recurso subordinado ao interposto pela demandada), bem como o arguido para o Tribunal da Relação de Lisboa.

O Tribunal da Relação de Lisboa, por despacho da Relatora, não admitiu o recurso subordinado e posteriormente, por acórdão de 15 de Abril de 2010, concedeu provimento aos recursos interpostos pelo arguido e pela demandada civil, revogou a sentença recorrida e substituiu-a por outra que absolveu o arguido do crime que lhe era imputado e que absolveu também a seguradora demandada civil de todos os pedidos cíveis deduzidos.

2. Inconformadas, recorrem agora as Assistentes C, D e E para o Supremo Tribunal de Justiça e concluem por longas e extensas conclusões (em desrespeito pela norma legal respectiva, que indica que nas conclusões o recorrente “resume” as razões do pedido), cujos tópicos são os seguintes:

1- Violação do Objectivo ou finalidades do Processo Penal.
2- Violação do Principio da livre apreciação da prova.
3- Violação do Princípio do in dubio pro reo.
4- Violação do Principio da oralidade e da imediação.
5- Devendo, igualmente, revogar-se a decisão de desentranhamento do Parecer/Perícia pelas abundantes razões que se aduziram nesse sentido, considerando-o parte integrante do processo e da sua motivação.
6- Tanto mais que foram violados todos os dispositivos legais invocados no Ac. aqui em questão, por erro e desvio da sua interpretação e falta de fundamentação/motivação como abundantemente se demonstrou ao longo de toda esta alegação.
7- Devendo, consequentemente, revogar-se todo o Acórdão aqui posto em crise e, a final, condenar-se o arguido pela prática do crime de que vinha acusado, mas agravado, devido até à ausência de auxílio à vitima, que estava ao seu alcance, como se provou por, às 10 horas seguintes, já estar a festejar uma boda no casamento de amigos sem qualquer tipo de constrangimento do sucedido.
8- Imputando-se-lhe a responsabilidade total pelo acidente, visto que o embate se deu já no IC 19, por trás, e a prioridade é um conceito que tem de ser entendido com razoabilidade.
9- E, a R., B, condenada a pagar às Assistentes as verbas peticionadas, por serem as adequadas.
10- Admitindo-se, remotamente, se alguma remota dúvida subsistir, então que se ordene a baixa do processo para que se proceda a julgamento que a remova.

3. O arguido veio responder ao recurso, pugnando pelo seu não provimento.

4. O Ministério Público, tanto na Relação como no STJ, foram de entendimento de que o recurso não era admissível quanto à parte criminal, por razões de ordem lógico sistemática na interpretação dos art.ºs 399.º, 400.º e 432.º do CPP.

5. Há que decidir da questão prévia da recorribilidade quanto à parte penal.

Os factos descritos nos autos ocorreram em 2002, mas a condenação na 1ª instância já foi em 2008 e a da 2ª em 2010.

Pode colocar-se, portanto, um problema de aplicação da lei processual no tempo, pois entre os factos e a sentença condenatória houve uma mudança de redacção das normas que regulam a recorribilidade das decisões penais, por virtude da reforma do CPP de 2007.

O art.º 5.º do CPP dispõe que a lei processual penal é de aplicação imediata, sem prejuízo da validade dos actos realizados na vigência da lei anterior (n.º 1). Porém, (n.º 2) a lei processual penal não se aplica aos processos iniciados anteriormente à sua vigência quando da sua aplicabilidade imediata possa resultar:

a) Agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa; ou

b) Quebra da harmonia e unidade dos vários actos do processo.

Esta disposição aplica-se, obviamente, ao recurso no processo penal e, concretamente, na parte que agora nos importa, às regras que respeitam à sua interposição.

Não vamos aqui escalpelizar, de novo, os argumentos que levaram o STJ à jurisprudência firme de que, em processo penal, a lei que regula a recorribilidade de uma decisão, ainda que esta tenha sido proferida em recurso pela Relação, é a que se encontrava em vigor no momento em que a 1ª instância decidiu, salvo se lei posterior for mais favorável para o arguido.

E não o vamos fazer, pois essa jurisprudência já foi sufragada pelo acórdão de fixação de jurisprudência n.º 4/2008, in DR de 2009-03-19. Remetemos a fundamentação, portanto, para a que aí foi explanada.

Deste modo, no caso em apreço, aplicam-se as regras de recorribilidade que hoje se encontram em vigor e não as da altura em que se iniciou o processo.


*

Em matéria de recorribilidade no processo penal rege o princípio geral que se encontra enunciado no art.º 399.º do código respectivo, onde se diz que “é permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei.”

Os casos em que as decisões judiciais não são recorríveis estão essencialmente tipificados no art.º 400.º do CPP e, por vezes, em normas avulsas, devendo interpretar-se, tanto uma como as outras, como leis de excepção, valendo, na dúvida, a regra geral.

A decisão recorrida é um acórdão absolutório do Tribunal da Relação, tirado em recurso de decisão da 1ª instância que condenara o arguido em pena de prisão suspensa na sua execução.

Será recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça?

A decisão recorrida é uma decisão final que conheceu do mérito e que não confirmou a condenação da 1ª instância e, por isso, a recorribilidade não está excluída pelas alíneas c) e d) do art.º 400.º do CPP07, a primeira a considerar irrecorríveis os acórdãos da relação que não conheçam, a final, do objecto do processo, a segunda a determinar a irrecorribilidade dos acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância.

Também não foi aplicada qualquer pena e, por isso, a situação não cabe nos casos de irrecorribilidade das alíneas e) e f) da mesma norma.

Assim, a decisão não está abrangida pelos casos de irrecorribilidade configurados no art.º 400.º do CPP07, nem em qualquer outra norma legal, pelo que, à primeira vista, tudo aponta para a aplicação da regra geral definida no art.º 399.º, isto é, para a recorribilidade.

Parece-nos evidente que não se devem esgrimir argumentos de ordem lógico-sistemática para contrariar essa ideia da recorribilidade, como faz o M.º P.º na Relação e no STJ, até porque a regra é a da recorribilidade e, portanto, as exclusões devem ser tratadas de forma restritiva quanto aos casos de não recorribilidade.

Mas, vejamos o que se diz com tal tipo de argumentos.

Se o sistema de recursos para o STJ já pecava por ser defeituoso antes da reforma de 2007, depois dela vieram a surgir muitas outras dúvidas, de natureza diferente, que terão resultado de alterações legislativas de última hora introduzidas no projecto inicial de revisão do CPP e que lhe desvirtuaram a linha orientadora.

Parecem existir duas claras linhas de força nas regras que constam das diversas alíneas da actual redacção do art.º 400.º do CPP, quando conjugadas com os art.ºs 427.º e 432.º.

Uma, a do primado da dupla conforme, pelo que, quando duas instâncias estão de acordo quanto à questão de mérito, só se permite uma tripla apreciação em sede de recurso ordinário em casos considerados de grande gravidade. Outra, a de que ao STJ, como última instância de recurso, só cabem os tais casos considerados de grande gravidade, aferida pela pena aplicada e não pela pena aplicável, dada a sua natureza de tribunal de revista, com função essencialmente uniformizadora da jurisprudência.

Assim, no que respeita ao princípio da dupla conforme, verifica-se que não há recurso para o STJ se a Relação confirmar uma absolvição da 1ª instância ou uma pena que aí tenha sido aplicada até 8 anos de prisão (art.º 400.º, n.º 1, als. d e f, do CPP). E quanto ao princípio de que ao STJ só chegam, pela via do recurso, os casos considerados de maior gravidade, veja-se a norma que não permite o recurso se a Relação condenar o arguido em pena não privativa da liberdade, qualquer que tenha sido a decisão da 1ª instância (absolvição, condenação em multa ou em prisão, etc.) e atente-se na norma que não permite o recurso directo para o STJ de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão não superior a 5 anos (art.º 432.º, n.º 1, al. c).

Mas estas linhas orientadoras não surgem como absolutas, pois sofrem de duas ou três excepções, cuja compreensibilidade não é evidente.

Com efeito, é admitida uma tripla apreciação em sede de recurso nos casos em que a Relação, em decisão desconforme com a 1ª instância, condena o arguido em pena privativa da liberdade, ainda que fixada no mínimo de 30 dias de prisão (art.º 400.º, n.º 1, al. e, “a contrario”). A gravidade do caso, aqui, não resulta da duração da pena, como noutras alíneas da mesma norma, mas da circunstância do arguido ter o direito de ver reapreciada a sua situação após a sua primeira condenação em pena privativa da liberdade.

Mas já não é permitido o recurso ao arguido, por força da mesma alínea e), no caso em que a Relação, em desconformidade com a 1ª instância, que até pode ter tido uma sentença absolutória, o vir a condenar em pena não privativa da liberdade. Aqui, apesar de não haver dupla conforme, o legislador terá entendido que a aplicação de uma mera pena de multa ou de outra não privativa da liberdade por um tribunal superior não tinha dignidade para seguir para a última instância de recurso.

Por fim, ainda como excepção ao princípio de que ao STJ só chegam os casos mais graves, aferidos pela dimensão da pena aplicada, há a situação presente, em que parece permitir-se o recurso para o STJ, como já vimos, nos casos em que a Relação, em decisão desconforme com a 1ª instância, absolve o arguido do crime, qualquer que tenha sido a pena aplicada na 1ª instância, mesmo que não privativa da liberdade.

Esta última situação não parece enquadrar-se no restante esquema legal. Efectivamente, é pouco compreensível que o STJ não possa reapreciar em sede de recurso ordinário um caso em que a Relação confirmou uma condenação numa pena pesada de 8 anos de prisão, mas já o possa fazer se, como é o caso dos autos, o arguido foi condenado na 1ª instância em pena não privativa da liberdade e depois absolvido pela Relação.

Contudo, não parece que devamos seguir por esta via, pois aos tribunais não cabe discutir o critério legislativo, ou a falta dele, no que respeita às questões que podem ou não chegar ao Supremo Tribunal de Justiça pela via do recurso, umas mais graves que não lhe podem ser colocadas, outras de menor dimensão e que são sujeitas à sua reapreciação. Tal critério, bom ou mau, é definido no âmbito da competência da política legislativa, reservada à Assembleia da República.

Para além de que a regra geral é a da recorribilidade.

Não é, pois, por esse motivo, de ordem lógico-sistemática, que se pode recusar a recorribilidade da decisão proferida nestes autos pela Relação.


*

Já vimos que a simples leitura dos art.ºs 399.º e 400.º do CPP permite que existam em simultâneo estas duas situações:

- não é recorrível para o STJ o acórdão da Relação, proferido em recurso, que condenou o arguido numa pena não privativa da liberdade por determinado crime e que, assim, revogou a absolvição da 1ª instância (art.º 400.º, n.º 1, al. e, do CPP);

- é recorrível para o STJ o acórdão da Relação, proferido em recurso, que absolveu o arguido por determinado crime e que, assim, revogou a condenação do mesmo na 1ª instância numa pena não privativa da liberdade (art.ºs 399.º e 400.º, este “a contrario”).

Trata-se, porém, da mesma situação, embora em posições invertidas, pois uma é simetricamente o inverso da outra. Apesar da manifesta semelhança, há um tratamento legislativo diferente ao nível da interposição dos recursos.

A primeira situação não é passível de um juízo de inconstitucionalidade.

Na verdade, o art.º 32.º, n.º 1, da Constituição dispõe que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.

É indiscutível, portanto, que o direito ao recurso faz parte do núcleo fundamental dos direitos de defesa.

Sobre esta questão há jurisprudência firme do Tribunal Constitucional desde há muitos anos.

«Em matéria de direito penal, a Constituição garante aos arguido que o processo penal lhes assegura "todas as garantias de defesa", ou seja, todos os direitos e instrumentos necessários para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação. Um dos meios ou uma das expressões do direito de defesa e o direito de recorrer, precisando todavia a jurisprudência que, ressalvado o "núcleo essencial" do direito de defesa centrado no direito de recorrer da sentença condenatória e dos actos judiciais que privem ou restrinjam a liberdade do arguido ou afectem outros direitos fundamentais seus, o direito de recorrer pode ser restringido ou limitado em certas fases do processo, podendo mesmo não ser admitido relativamente a certos actos do juiz» (Ac. do TC de 28-06-1994, proc. 113/92).

Mas, o Tribunal Constitucional tem reafirmado em diversos acórdãos e ao longo dos anos que «A Constituição não impõe ao legislador a obrigação de consagrar o direito de recorrer de todo e qualquer acto do juiz, admitindo-se embora, no processo penal, o direito a um duplo grau de jurisdição como decorrência da exigência constitucional do principio da defesa, mas já não o direito a um triplo grau de jurisdição» (v.g. Acs. do TC n.ºs 163/90 de 23-05-1990, 331/02 de 10-07-2002, 377/03 de 15-07-2003, 375/05 de 07-07-2005, 64/06 de 24-01-2006, 530/07 de 29-10-2007).

Assim, o facto do arguido no caso da al. e) do n.º 1 do art.º 400.º do CPP07 não dispor de um terceiro grau de recurso não viola a Constituição, pois o núcleo essencial dos seus direitos de defesa já ficou ressalvado com o duplo grau de jurisdição, para mais num caso em que a decisão final nem sequer o privou nem lhe restringiu o direito à liberdade.

Contudo, o que já não é tolerável do ponto de vista dos direitos de defesa é que no caso simetricamente oposto a esse, em que ao arguido continua vedado o direito a novo recurso, agora por falta de interesse em agir (pois foi absolvido na segunda instância da acusação, após condenação na 1ª instância em pena não privativa da liberdade), a acusação, isto é, o Ministério Público ou Assistente, possa recorrer.

Nas “duas imagens invertidas”, o arguido não teria direito a interpor recurso em qualquer delas, mas permitir-se-ia ao M.º P.º e ao Assistente, numa delas, um direito que àquele não assiste (o terceiro grau de jurisdição).

Criar-se-ia uma desigualdade de armas, desfavorecendo o arguido e beneficiando a acusação.

É certo que o Processo Penal não é um processo de partes. Mas o direito de defesa, constitucionalmente protegido, exige a igualdade de armas, pelo menos após o encerramento do inquérito.

«O princípio da igualdade de armas, em processo penal de um Estado de Direito, está ao serviço do arguido, visando garantir que ele não seja colocado em inferioridade no processo (…). O direito ao recurso, enquanto dimensão essencial do princípio da defesa não pode ser visto como uma garantia do assistente mas tão só do arguido» (Ac. do TC de 27-10-1992. proc. 277/91).

A “igualdade de armas” no processo prende-se também com o princípio constitucional da igualdade.

O princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição exige a dação de tratamento igual aquilo que, essencialmente, for igual, reclamando, por outro lado, a dação de tratamento desigual para o que for dissemelhante, não proibindo, por isso, a efectivação de distinções. Ponto é que estas sejam estabelecidas com fundamento material bastante e, assim, se não apresentem como irrazoáveis ou arbitrárias” (Ac. do TC de 01-03-1994, proc. 504/92).

Ora, o tratamento diferente que a lei processual dá aos dois casos de recorribilidade anteriormente indicados, simetricamente opostos e, portanto, indissociáveis, já que não se pode encarar um sem vislumbrar o outro, como num espelho que inverte a imagem da mesma “figura”, coloca o arguido nesta situação absurda: naquele em que é condenado, não lhe é permitido recorrer para obter a sua absolvição, no outro em que é absolvido, a acusação pode recorrer para obter a sua condenação!

Esta diferença de tratamento, em casos que deveriam ser tratados como iguais, é irrazoável e arbitrária, para mais com ofensa do núcleo fundamental do direito de defesa.

Há ofensa, nesta interpretação das normas de processo penal, dos art.ºs 13.º e 32.º, n.º 1, da Constituição, por violação material dos direitos à igualdade e de defesa (através do recurso) no processo penal.

Note-se que estamos aqui a reportar-nos a um caso específico, em que a condenação na 1ª instância foi numa pena não privativa de liberdade e que, posteriormente, reapreciada pela Relação em sede de recurso, foi determinada a absolvição do arguido. Pois, se a condenação na 1ª instância fosse em pena privativa de liberdade, nenhuma objecção se poria ao recurso para o STJ por parte da acusação contra o acórdão absolutório da Relação, pois que na situação simetricamente oposta (absolvição na 1ª instância e condenação na Relação em pena privativa da liberdade) o arguido poderia interpor recurso para o STJ (cfr. al. e, a contrario, do n.º 1 do art.º 400.º do CPP).

Concluímos, assim, que é materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 13º e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a interpretação dos artigos 399.º e 400.º do Código de Processo Penal na versão que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, no sentido de que é admissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, interposto pelo Ministério Público ou pelo Assistente, do acórdão do Tribunal da Relação, proferido em recurso, que absolveu o arguido por determinado crime e que, assim, revogou a condenação do mesmo na 1ª instância numa pena não privativa da liberdade.

Termos em que se recusa a aplicação dessas normas com tal interpretação, que consideramos inconstitucional e não se admite o recurso das Assistentes quanto à parte penal, que assim é parcialmente rejeitado.

6. Pelo exposto, por decisão sumária do relator, rejeita-se o recurso das Assistentes quanto à parte criminal, por inadmissibilidade legal.

Nos termos dos art.ºs 515.º n.º 1, al. b), do CPP e 87.º, n.ºs 1, al. a) e 3, do CCJ, fixa-se em 2 (duas) UC a taxa de justiça a cargo de cada uma das Assistentes.

Nos termos do art.º 420.º, n.º 3, do CPP, cada uma das Assistentes pagará, ainda, uma importância de 3 (três) UC.

Voltem os autos conclusos (recurso na parte cível).




II. Desta decisão sumária reclamou para a conferência, nos termos do art.º 417.º, n.ºs 6 e 8, do CPP, o Ministério Público, alegando, em suma, o seguinte:

“Salvo o muito respeito devido, o Ministério Público discorda da douta decisão sumária por continuar a entender que o sistema de recursos em processo penal, nomeadamente após a publicação da lei n.º 48/07, de 29 de Agosto não deve ser levada isoladamente ao pé da letra, sem enquadramento sistémico, acolhendo soluções que são directamente afastadas pelo artigo 432°, n.º 1, alínea c), produzindo uma contradição intrínseca que o equilíbrio normativo sobre o regime dos recursos para o STJ não pode comportar.
Basta pensar que, na leitura isolada, estreitamente literal, um acórdão proferido em recurso pela relação, que absolvesse um assistente, não confirmando a decisão de um tribunal de Pequena Instância, seria recorrível para o STJ, contrariando de modo insuportável os princípios, a filosofia e a teleologia que estão pressupostos na repartição da competência em razão da hierarquia definida na regra-base sobre a recorribilidade para o STJ do artigo 432°, n.º 1, alínea c) do CPP.
A contradição e a assimetria normativa e a consequente aporia intrasistemática seriam, assim, tão patentes e tão intensas, que tornariam insuportável tal sentido.
Impõe-se, por isso, um acrescido esforço de interpretação. Uma norma legal, contra o seu sentido literal mas de acordo com a teleologia imanente à lei, pode exigir uma limitação que não está contida no texto, acrescentando-se uma restrição que é requerida em conformidade com o sentido da norma.
Pode suceder, com efeito, que uma norma, lida demasiado amplamente segundo o seu sentido literal», tenha de ser reconduzida e deva ser «reduzida ao âmbito de aplicação que lhe corresponde segundo o fim da regulação ou a conexão do sentido da lei», procedendo às «diferenciações requeridas pela valoração» e «exigidas pelo sentido e finalidade da própria norma» e pela finalidade ou sentido «sempre que seja prevalecente» de outra norma, que de outro modo seria seriamente afectada, seja pela "natureza das coisas" ou «por um princípio imanente à lei prevalecente num certo grupo de casos» (cfr., KARL LARENZ, "Metodologia da Ciência do Direito", 2° ed., p. 473-474).
Nestes casos, deverá o intérprete operar a "redução teleológica" da norma.
A redução ou correcção respeitará também o princípio da proporcionalidade e serve o interesse preponderante da segurança jurídica.
A perspectiva, o sentido essencial e os equilíbrios internos que o legislador revelou na construção do regime dos recursos para o STJ, com a prevalência sistémica, patente e mesmo imanente, da norma do artigo 432°, e especialmente do seu n.º 1, alínea c), impõe, por isso, em conformidade, a redução teleológica da norma do artigo 400°, n.º 1, alínea e) do CPP, de acordo com o princípio base do artigo 432°, n.º 1, alínea c) do CPP, necessária à reposição do equilíbrio e da harmonia no interior da regime dos recursos para o STJ. E, assim, no discurso não poderíamos de deixar de ter em atenção o que se deixou escrito na decisão sumária quando se citam os Acs, do TC de 27.10.1992 e Ac. Do TC de 1/03/1994), Num caso e no outro encontrar-nos-íamos face ó outra face de Jano. Seria, a nosso ver, ilógico assistémico atenta a lógica dos recursos, não fazendo qualquer sentido normativo (material e processual), que , em caso de não ser admissível recurso do acórdão da primeira instância para o Supremo Tribunal de Justiça, por se ter aplicado pena de prisão não superior a cinco anos, tendo sido interposto recurso para a Relação, tribunal competente para apreciar este recurso, que não confirmou a decisão da 1.' instância, absolvendo o arguido, houvesse possibilidade processual, legitimidade do assistente e do MP para interporem recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, com o fim, escopo de ao arguido lhe ser aplicada uma pena, eventual de prisão.
III. A solução a que se chegou pela redução teleológica da alínea e) do n.º 1 do artigo 400° do CPP, no sentido da convergência necessária com os limites verdadeiramente definidores da recorribilidade para o STJ, permite desenhar a solução, que será construída, ou ad minus, ou pela identidade de razão. Nessas circunstâncias e atentos os elementos em causa entendemos que a decisão em causa não é recorrível para o STJ., por via da interpretação das normas legais em causa e sem que vislumbremos, in casu, qualquer rejeição do recurso por via da inconstitucionalidade que a nosso ver não se verifica.
IV. Entendemos que o recurso deve ser rejeitado, atentos os motivos supra expostos, e não em função de uma inconstitucional idade, a qual não existe, a nosso ver, dentro de uma interpretação sistémica do regime de recursos, em que negando-se por força da lei o recurso ao assistente não se está a colidir com os direitos constitucionalmente consagrados ao arguido nem ao assistente.
A nosso ver, n questão parece surgir, porque não se interpretou correctamente, o direito ao recurso por parte do assistente, na vertente interpretativa do art. 400 al. e) do CPP. no caso da absolvição do arguido por parte do Tribunal da Relação.
Nesta conformidade entendo que o acórdão a proferir deve alterar a fundamentação subjacente à rejeição do recurso no que toca à parte penal.
O recurso não deve, assim, ser admissível (artigo 432°, n.º 1, alínea c) do CPP), e consequentemente deve ser rejeitado (artigos 420°, n.º 1, alínea b) e 414°, n.º 2 do CPP).


III. Foram colhidos os vistos e realizada conferência com o formalismo legal.

Cumpre decidir a reclamação contra a decisão sumária do relator.


O Ministério Público entende, na esteira de alguma jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que não há recurso ordinário para este Tribunal de acórdão do Tribunal da Relação que conheça de recurso interposto de deci­são - seja do tribunal singular, colectivo ou do júri - que aplique pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a cinco anos, pois assim ir-se-ia contrariar «de modo insuportável os princípios, a filosofia e a teleologia que estão pressupostos na repartição da competência em razão da hierarquia definida na regra-base sobre a recorribilidade para o STJ do artigo 432°, n.º 1, alínea c) do CPP. A contradição e a assimetria normativa e a consequente aporia intrasistemática seriam, assim, tão patentes e tão intensas, que tornariam insuportável tal sentido».
Não nos vamos alongar sobre este tema, pois a decisão sumária sob reclamação já contém suficiente resposta.

Recordemos, no entanto, que a referida jurisprudência refere que houve uma clara intenção do legislador da Lei nº 48/2007, de 29.08 de restringir os recursos para o Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior gravidade (esta conotada, por via da técnica usada para aferir da admissibilidade do recurso, com a espécie e medida da pena aplicada) e de que constituem manifestações bem paradigmáticas as limitações decorrentes:

a) tratando-se de recurso directo para o S.T.J., do preceituado na alínea c) do n.º 1 do art. 432° do C.P.P.

b) estando em causa decisões proferidas pelas relações, em recurso, do estatuído na al. f) do nº 1 do art. 400° do mesmo diploma legal.

Todavia, se, na verdade, como vem referido na decisão sumária, uma das linhas de força que orientou o legislador da reforma de 2007 na configuração normativa dos casos de recorribilidade para o STJ é a de que a este tribunal, como última instância de recurso, só devem caber os casos considerados de maior gravidade, aferida pela pena aplicada e não pela pena aplicável, o que é certo que tal não foi configurado como regra absoluta, impossível de ultrapassar, pois o próprio legislador logo admitiu pelo menos uma excepção, a que vem configurada no art.º 400.º, n.º 1, al. e), “a contrario”. Com efeito, através desta norma, o legislador quis fazer intervir o STJ numa terceira apreciação de recurso, nos casos em que a relação, julgando em recurso, aplique pena de prisão que não confirme a decisão da 1ª instância, ainda que a mesma seja fixada no mínimo de 30 dias. Bem longe, portanto, dos tais 5 anos de prisão que a referida jurisprudência considera como a pena a partir da qual se pode colocar o caso ao mais alto Tribunal.

Assim, se o próprio legislador abriu excepção à “regra”, não faz sentido erigir agora a «regra» como barreira inultrapassável, cuja violação constituiria uma «contradição intrínseca» do sistema.

Por outro lado, a regra geral não é a de que ao STJ só se apresentam os casos de maior gravidade, mas a de que todas as decisões são recorríveis se nada tiver sido disposto em contrário (art.º 399.º), pelo que não parece pertencer à melhor técnica jurídica a interpretação restritiva de certa norma ou de certo conjunto de normas, como faz agora o M.º P.º, visando demonstrar que não é admissível o recurso de determinada decisão. A interpretação restritiva não pode servir para aumentar o número de excepções à regra e sim para as diminuir, pelo que só deverá ser usada para confirmar que certa decisão é recorrível, não para lhe negar recorribilidade.

Pensa-se, de resto, que na jurisprudência que pretende, tal como o ora reclamante, que tem de haver uma redução teleológica da norma do artigo 400°, n.º 1, alínea e) do CPP, de acordo com o princípio base do artigo 432°, n.º 1, alínea c) do CPP, é feita uma transposição desta última norma para um sentido que a mesma não autoriza. Aí o que se proíbe é o recurso directo para o STJ de decisões condenatórias que tenham aplicado pena de prisão até 5 anos, não o recurso para o STJ de decisões da relação, proferidas em recurso, que apliquem essas penas em desconformidade com a 1ª instância.

Por isso, confirma-se a decisão sumária na parte em que decidiu que a interpretação dos art.ºs 399.º e 400.º do CPP permite a recorribilidade do acórdão da relação, proferido em recurso, que absolveu o arguido, anteriormente condenado em 1ª instância numa pena não privativa da liberdade.

E nada há a acrescentar nem a alterar sobre a inconstitucionalidade a que alude o relator na mesma decisão sumária, pois o ora reclamante, embora afirme que a mesma não se verifica, não refere minimamente as razões dessa discordância.

Há, pois, que indeferir a reclamação do Ministério Público.




IV - Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, reunidos em conferência, em indeferir a reclamação do Ministério Público e em manter o decidido pelo relator.

Não há lugar a custas.

Supremo Tribunal de Justiça, 25 de Novembro de 2010

Santos Carvalho (Relator)

Rodrigues da Costa (vencido, conforme declaração em anexo)

Arménio Sottomayor



Voto de vencido

Votei vencido por entender, na linha seguida pelo Ministério Público, que não é admissível recurso da decisão da Relação que, revogando decisão da 1ª instância, absolve o arguido do crime por que havia sido condenado, estando afastada, por essa via, a inconstitucionalidade da suposta norma aplicável. Isto, por força de uma interpretação que leve em conta todo o sistema de recursos em processo penal, nomeadamente no que diz respeito ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos da qual se há-de operar uma redução teleológica da norma do art. 400.°, n.º 1, alínea e) do art. 400.° do CPP, na redacção introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto. Friso: redução teleológica - e não interpretação restritiva como se diz no texto do acórdão que fez vencimento. Mas o melhor será explanar a minha posição, recorrendo à transcrição de parte de uma decisão sumária por mim subscrita no Proc. n.º 121 W 07.9TA, desta 5ª Secção:
«No domínio da legislação anterior (...), era seguro que o caso configurado não era susceptível de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ).
»Na verdade, a regra fundamental dos recursos para o STJ, tal como hoje, encontrava-se plasmada no art. 432.° do CPP, em que avultavam as alíneas c), d) e e), que atribuíam a competência de forma directa e a alínea b), de forma indirecta.
»Das primeiras resultava que havia recurso directo para o STJ de acórdãos finais do tribunal de júri, do tribunal colectivo, visando neste caso o reexame da matéria de direito, e das decisões interlocutórias que devessem subir cora os recursos daquelas decisões.
»Quanto á alínea b) remetia para o art. 400.°, n.º 1, que definia especificadamente, tal como na actualidade, a irrecorribilidade de certas decisões, quer para a Relação, quer para o STJ.
»De destacar, quanto a este, a alínea d) que estabelecia a irrecorribilidade para o STJ de acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmassem decisão de 1 ' instância.
»Para os acórdãos absolutórios das relações não confirmativos, regia o disposto na seguinte alínea e).
»Este normativo estabelecia a irrecorribilidade de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, em processo por crime a que fosse aplicável pena de multa ou perna de prisão não superior a cinco anos, mesmo em caso de concurso de infracções ou em que o Ministério Público tivesse usado da faculdade prevista no art.º 16. °, n. ° 3.
»Lido em correlação com a alínea d), extraía-se a significação de que os acórdãos das relações que não confirmassem decisão de 1ª instância só eram susceptíveis de recurso para o STJ se ao caso fosse aplicável pena de prisão superior a 5 anos.
»É que, para os efeitos da alínea e), tanto valia que os acórdãos das relações fossem absolutórios como condenatórios. Nos casos em que estivesse em causa uma pena de multa ou de prisão não superior a 5 anos, as relações decidiam definitivamente, quer confirmassem, quer não confirmassem a decisão de 1ª instância. Entendia-se, no domínio dessa legislação, de forma uniforme, que, por se tratar de casos de pequena e média gravidade, um único grau de recurso bastava para assegurar plenamente o direito ao recurso, serra que houvesse dependência do pressuposto da chamada dupla conforme. Já nos casos mais graves, puníveis com pena superior a 5 anos, mas igual ou inferior a
anos de prisão, exigia-se que o acórdão condenatório da Relação fosse confirmativo da decisão da 1ª instância como pressuposto da irrecorribilidade para o STJ.
»Deste modo, era líquido que a regra basilar do recurso para o STJ assentava erra dois pressupostos: a natureza do tribunal (colectivo ou de júri) e a gravidade da pena: superior a 5 anos de prisão.
»Com as alterações introduzidas pela Lei n.º 47/2007, de 29 de Agosto, a regra básica da recorribilidade das decisões para o STJ continuou a ser fixada no art. 432.°, alíneas c) e d), que não só está em continuidade com a linha anterior, como até a reforçou, visto que o critério da recorribilidade deixou de assentar na pena aplicável, mas na pena concretamente aplicada, o que, sem dúvida, restringe o recurso para o STJ, na orientação de que para este devem estar reservados os casos mais graves.
»Quanto à alínea b) constitui, tal como dantes, uma forma indirecta de determinar a competência para o recurso, visto que remete para o art. 400.°, e este não é específico para o Supremo Tribunal de Justiça, definindo-se, além disso, tal competência por via negativa, isto é, por enumeração dos casos de irrecorribilidade.
Assim, a alínea b), do n.º 1, do art. 432.° diz que também são recorríveis para o STJ as decisões que não forem irrecorríveis nos termos do art. 400.° .
»Ora, este art. 400.°, na versão definitiva que acabou por adquirir, veio lançar algumas perplexidades, dúvidas e confusões. E mais do que isso: veio introduzir algum desconcerto no equilíbrio sistemático do Código, em matéria de recursos.
»É o que sucede, por exemplo, com a alínea e), do n.º 1, que estabelece não ser admissível recurso «de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa de liberdade», quando, na redacção anterior, se prescrevia não ser admissível recurso «de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, em processo por crime a que fosse aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a cinco anos, mesmo em caso de concurso de infracções ou em que o Ministério Público tivesse usado da faculdade prevista no art. 16.°, n.º 3 ».
»A tomar a actual disposição à letra, significaria ela, por interpretação a contraria, que seria admissível recurso de todos os acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que aplicassem pena privativa de liberdade, excepto quando, nos termos da alínea f) seguinte, esses acórdãos confirmassem decisão de 1ª instância e a pena de prisão aplicada não fosse superior a 8 anos. Ou seja, sempre que se não verificasse a chamada dupla conforme, dentro do condicionalismo da alínea f), todo e qualquer acórdão das relações, que aplicasse pena privativa de liberdade, fosse ela qual fosse -por exemplo, uma pena de 30 dias de prisão, quando a decisão da 1ª instância tivesse sido absolutória ou tivesse aplicado pena de multa ou pena alternativa á pena de prisão -seria susceptível de recurso para o STJ.
»Com efeito, seria essa a interpretação literal, tenda desaparecido, como desapareceu a referência limitativa, constante da alínea e), na redacção anterior, a pena de multa ou pena de prisão não superior a cinco anos. Todavia, uma tal interpretação comporta aporias e contradições intra-sistémicas que a tornam inaceitável, à luz de una correcta hermenêutica.
»É o que resulta do acórdão do STJ de 18-02-2009, proferido no Proc. n.º 102/09, da 3ª Secção (Conselheiros Henrique Gaspar/Armindo Monteiro), que se debruçou sobre a questão de forma extensa e minuciosa.
»A determinada altura, diz-se nesse aresto:
Não sendo razoavelmente possível, pelos elementos objectivos que o processo legislativo revela, identificar a vontade do legislador no sentido de permitir a conclusão de que na alínea e) do nº 1 do artigo 400° do CPP disse mais do que quereria, não parece metodologicamente possível operar uma interpretação restritiva da norma.
Porém, a norma, levada isoladamente ao pé da letra, sem enquadramento sistémico, acolheria solução que é directamente afastada pelo artigo 432°, nº 1, alínea c), produzindo uma contradição intrínseca que o equilíbrio normativo sobre o regime dos recursos para o STJ não pode comportar.
Basta pensar que, na leitura isolada, estreitamente literal, um acórdão proferido em recurso pela relação, que aplicasse uma pena de trinta dias de prisão, não confirmando a decisão de um tribunal de Pequena Instância, seria recorrível para o STJ , contrariando de modo insuportável os princípios, a filosofia e a teleologia que estão pressupostos na repartição da competência em razão da hierarquia definida na regra-base sobre a recorribilidade para o STJ do artigo 432°, nº 1, alínea c) do CPP. A contradição e a assimetria normativa e a consequente aporia intra-sistemática seriam, assim, tão patentes e tão intensas, que tornariam insuportável tal sentido. Impõe-se, por isso, um acrescido esforço de interpretação.
Uma norma legal, contra o seu sentido literal mas de acordo com a teleologia imanente â lei, pode exigir uma limitação que não está contida no texto, acrescentando­-se uma restrição que é requerida em conformidade com o sentido da norma. Pode suceder, com efeito, que uma norma, lida «demasiado amplamente segundo o seu sentido literal», tenha de ser reconduzida e deva ser «reduzida ao âmbito de aplicação que lhe corresponde segundo o fim da regulação ou a conexão do sentido da lei», procedendo às «diferenciações requeridas pela valoração» e «exigidas pelo sentido e finalidade da própria norma» e pela finalidade ou sentido «sempre que seja prevalecente» de outra norma, que de outro modo seria seriamente afectada, seja pela "natureza das coisas" ou «por um princípio imanente à lei prevalecente num certo grupo de casos» (cfr., KARL LARENZ, "Metodologia da Ciência do Direito", 2" ed., p. 473-474).
Nestes casos, deverá o intérprete operar a "redução teleológica" da norma. A redução ou correcção respeitará também o princípio da proporcionalidade e serve o interesse preponderante da segurança jurídica.
A perspectiva, o sentido essencial e os equilíbrios internos que o legislador revelou na construção do regime dos recursos para o STJ, com a prevalência sistémica, patente e mesmo imanente, da norma do artigo 432°, e especialmente do seu nº 1, alínea c), impõe, por isso, em conformidade, a redução teleológica da norma do artigo 400°, nº 1, alínea e) do CPP, de acordo com o principio base do artigo 432°, nº 1, alínea c) do CPP, necessária á reposição do equilíbrio e da harmonia no interior da regime dos recursos para o STJ.
»Ora, se tal solução se impõe relativamente a acórdãos condenatórios das relações que condenem em pena privativa de liberdade, ainda que a 1ª instância tenha aplicado pena não privativa de liberdade ou mesmo absolvido o arguido, desde que a pena aplicada seja de multa ou de prisão não superior a cinco anos, muito mais se há-de justificar, quando a 1ª instância tenha condenado em pena de multa ou de prisão não superior a cinco anos e a relação, por acórdão proferido em recurso, tenha decretado a absolvição.
»Por um lado, fica satisfeito, com a possibilidade de reexame do caso por um tribunal superior, o direito ao recurso e, por outro, não se assoberba o tribunal que forma a cúpula da pirâmide da hierarquia dos tribunais com casos de pouca gravidade.
»Acresce que o direito ao recurso, mesmo num único grau, até nem tem, nas situações como a presente, o mesmo tipo de exigência. Com efeito, trata-se de situações de pequena gravidade em que a 1ª instância condenou o arguido e a Relação absolveu.
»Efectivamente, o Tribunal Constitucional sempre entendeu que o direito ao duplo grau de jurisdição, como decorrência do art. 32.°, n.º 1 da Constituição da República, apenas tem justificação, com carácter de obrigatoriedade, em relação a decisões penais condenatórias e decisões respeitantes à situação do arguido, face á privação ou restrição da liberdade ou outros direitos fundamentais (Cf. o acórdão do TC n.º 565/2007 - DR 2.ª S de 3/1/2008, e a extensa jurisprudência ai recenseada).
»No caso presente, nem sequer está em causa nenhuma dessas situações em que ainda se pudesse afirmar que o arguido foi condenado pela primeira vez na Relação em pena privativa ou restritiva da liberdade ou de outros direitos fundamentais.
»As antinomias, no sistema de recursos, a que a solução contrária poderia dar lugar são evidentes. Corno se salienta no Acórdão deste Tribunal de 25/06/2008, Proc. n.º 1879-08, da 3ª secção (Conselheiros Pires da Graça/Raul Borges), «seria irrisório que, por exemplo, fosse possível recurso para o STJ de acórdão da Relação que absolvesse de um crime de ofensas corporais simples por negligência, ou de um crime de ameaça, constante de decisão do tribunal singular, sendo que, por outro lado, já não seria possível o recurso de acórdão da Relação que confirmasse uma pena de 8 anos de prisão (por ex., por homicídio voluntário tentado) aplicada pelo tribunal colectivo.» E repare-se que, em ambos os casos, os recursos podiam ser restritos à matéria de direito, havendo no primeiro caso - uma bagatela penal - a possibilidade de duplo grau de recurso em matéria de direito e, no segundo - um caso de certa gravidade - apenas um único grau de recurso.
»Por conseguinte, face á incongruência inaceitável que uma tal solução geraria no equilíbrio e unidade do sistema de recursos, de resto contrariada pelas proclamadas intenções do legislador e pela exposição de motivos da proposta de lei 157/VII, de alteração do Código de Processo Penal: «Retoma-se a ideia de diferenciação orgânica, mas apenas fundada no princípio de que os casos de pequena ou média gravidade não devem, por norma, chegar ao Supremo Tribunal de Justiça» (ponto 16. e) dessa proposta), não resta outra solução senão a de proceder a uma redução teleológica da norma, nos moldes acima transcritos e constantes do acórdão de 18/02/09, proferido no Proc. n.º 102/09, da 3ª Secção.
»Ou seja:
Em caso de absolvição pela Relação, deve considerar-se que só é recorrível para o STJ o acórdão da Relação que se debruce sobre crime em que a pena aplicada pelo tribunal da 1. ° instância tenha sido superior a 5 anos de prisão.»

Eis, pois, a nossa posição

a) Rodrigues da Costa

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