Decisão

Acordam, em sessão plenária, no Tribunal Constitucional: I — Relatório 1 — O Procurador-Geral da República vem, ao abrigo do disposto no artigo 281º, nº 1, alínea a), da Constituição, conjugado com o artigo 62º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, requerer se declare, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade dos artigos 30º, n. os 2 e 3, e 7º, nº 2, do Decreto-Lei nº 98/84, de 29 de Março, uma vez que, em seu parecer, tais preceitos violam o artigo 240. °, nº 2, da Constituição. Fundamentou o seu pedido, em síntese, como segue: a)As assembleias regionais das regiões autónomas têm o poder de «legislar, com respeito da Constituição e das leis gerais da República, em matérias de interesse específico para as regiões», mas só na medida em que tais matérias «não estejam reservadas à competência própria dos órgãos de soberania»; b)O «estatuto das autarquias locais, incluindo o regime das finanças locais», é matéria que se inscreve na competência reservada da Assembleia da República; c)Ora, embora o nº 1 do artigo 30º daquele Decreto-Lei nº 98/84 estabeleça que a aplicação do diploma às regiões autónomas «será regulamentada por decreto das respectivas assem­bleias regionais», do que, em direitas contas, se trata é de lhes deferir competência legislativa própria e autónoma; d)De facto, no nº 3 do citado artigo 30º confere-se-lhes o poder de fixarem um novo sistema de indicadores para a distribuição, entre os municípios das regiões autónomas, das verbas que para elas são globalmente transferidas pelo Fundo de Equilíbrio Financeiro. Poder que congloba a faculdade de fazerem tal distribuição «sem o mínimo respeito ou dependência do conjunto ponderado de indicadores objectivos que, para o mesmo efeito, é definido pela lei geral — artigo 7º do mesmo diploma —, com referência ao conjunto dos municípios do País»; e)Ora, isso pode vir a traduzir-se numa clara ofensa do princípio da uniformidade, a nível nacional, do regime das finanças locais, consagrado no artigo 240º, nº 2, da Constituição, que exige que sejam «comuns e uniformes os critérios objectivos [...] que, para todo o País, fixam a forma com se distribuem, entre estes, os recursos que, em conjunto, lhes forem afectados»: basta para tanto que os critérios, que as assembleias regionais venham a fixar, sejam diversos dos legalmente fixados; f)Para além disso, o diploma em causa não diz «como será con­cretamente aprovado o montante global que do Fundo de Equi­líbrio Financeiro será transferido para as regiões autónomas com destino aos seus municípios»; g)Na verdade, o nº 2 do artigo 7º do diploma aqui em causa limita-se a mandar subtrair ao Fundo de Equilíbrio Financeiro as verbas destinadas aos municípios regionais; h)Ora, se essa determinação global se fizer sem dependência dos indicadores objectivos gerais — e, face ao teor do citado nº 2 do artigo 7º, tudo leva a crer que é isso o que virá a acontecer —, então, também aí se estarão a favorecer (ou em prejudicar) o conjunto das autarquias insulares em detrimento (ou a favor) das do continente — o que sempre se traduzirá em violação do nº 2 do artigo 240º da Constituição. 2 — O Primeiro-Ministro, notificado para responder, veio dizer, em síntese, o seguinte: a)Conquanto o diploma questionado não refira expressamente o modo de calcular o montante global de receitas a atribuir aos municípios de cada uma das regiões autónomas, esse cálculo há-de fazer-se com respeito pelos indicadores enumerados no nº 1 do seu artigo 7º; b)Assim sendo, as normas que lhes mandam atribuir uma verba global, a transferir pelo Fundo de Equilíbrio Financeiro, «não se traduzem em qualquer tipo de discriminação, em favor (ou desfavor) dos municípios do continente ou das regiões», não importando, por isso, nessa parte, violação do nº 2 do artigo 240º da Lei Fundamental; c)O Governo, com a edição do Decreto-Lei nº 98/84, de 29 de Março, conferiu poderes às assembleias regionais para definirem os indicadores que hão-de servir de guia na distribuição pelos municípios insulares da verba global do Fundo de Equilíbrio Financeiro que for afectada a cada uma das regiões — o que significa que foi a própria Assembleia da República quem, ao regulamentar a matéria das finanças locais, considerou que a sua competência se esgota com a atribuição das verbas globais às regiões autónomas; d)E, assim sendo, limitando-se a lei a transferir para as assembleias regionais, que têm um melhor conhecimento do «condicionalismo local», os poderes para fixarem, a nível regional, a «forma de redistribuição das verbas do Fundo de Equilíbrio», devendo tais poderes ser exercidos por decreto legislativo regio­nal, e não por regulamento, e não se criando, aqui, qualquer categoria de acto legislativo não referido no nº 1 do artigo 115º da Constituição, nem tão-pouco havendo, no caso, uma deslegalização, não parece que haja qualquer inconstitucionalidade; e)A transferência de poderes para as assembleias regionais, a que acaba de fazer-se referência, não viola o atrás citado nº 2 do artigo 240º da Constituição, pois não afecta a «justa distribuição dos recursos públicos pelo Estado e pelas autarquias», nem com isso deixa de se observar «a directriz estabelecida no preceito constitucional de corrigir as desigaldades entre autarquias do mesmo grau»; f)Na verdade, «nada garante que a aplicação exclusiva dos indicadores fixados no nº 1 do artigo 7º servisse melhor aquele objectivo do que a adopção do regime escolhido, que permite serem os órgãos legislativos regionais [...] a decidirem-se pelos mesmos ou por outros indicadores»; g)«O princípio constitucional da alegada uniformidade a nível nacional do regime das finanças locais não pode [...] ser rigidamente interpretado no sentido de que, a todos os municípios, mesmo os que se situam nas regiões autónomas e, a essa localização e ao conjunto das condições sócio-económicas inerente, devam um determinado estádio de desenvolvimento, deva ser atribuída exactamente a mesma verba que um município do continente, apenas em razão da sua classificação. Pelo contrário, acha-se que o objectivo constitucional da correcção das desigualdades a nível local através das verbas do Fundo só será atingido se forem tidas na devida conta as especificidades regionais»; h )E, assim, legitimada estará a delegação nas assembleias regionais dos poderes para a fixação dos indicadores destinados a orientar a distribuição entre os respectivos municípios das verbas atribuídas pelo Fundo a cada região, pois que tal distribuição haverá de fazer-se visando a correcção das desigualdades existentes e de acordo com os planos de desenvolvimento regional; i)Finalmente: se, acaso, os decretos legislativos regionais a editar não observarem estes parâmetros, então, serão esses diplomas que serão inconstitucionais. 3 — Cumpre decidir. O thema decidendum é o seguinte: 1 ª questão — a norma constante do artigo 30º, nº 3, do Decreto-Lei nº 98/84, de 29 de Março, ao conferir às assembleias regionais poderes para definir os indicadores que hão-de servir para a distribuição pelos municípios da respectiva região da verba global, que, para elas, é transferida pelo Fundo de Equilíbrio Financeiro, viola o artigo 114º, nº 2, conjugado com o artigo 168º, nº 1, alínea r), da Constituição? 2 questão — Aquela norma — a constante do citado artigo 30. °, n. º 3, do Decreto-Lei n .º 98/84 — viola o artigo 240. °, n. 0 2, da Constituição? 3 questão ? — a norma constante do artigo 7º, nº 2, conjugada com o artigo 30º, nº 2, do mesmo Decreto-Lei nº 98/84, no ponto em que, do Fundo de Equilíbrio Financeiro, manda atribuir uma verba global a cada uma das regiões autónomas, para, aí, ser distribuída pelos municípios, viola o artigo 240. °, nº 2, da Constituição? 4 — Antes de se passar à decisão das questões, que acabam de colocar--se, anotar-se-á que o facto de, no petitório inicial, os artigos 114º, nº 2, e 168º, nº 1, alínea r), da Constituição não virem expressamente indicados como normas eventualmente infringidas, não obsta a que este Tribunal conduza a sua indagação por esse caminho também. De facto, de um lado, aduzem-se razões que têm a ver com a violação daqueles preceitos constitucionais [v., supra, nº I, alíneas a) a d)], e, de outro lado, ainda que assim se não houvesse de entender o requerimento inicial, o certo é que o princípio do pedido apenas impede que, aqui, se decida a inconstitucionalidade de uma norma, sem que esta haja sido posta em causa pelo requerente. Não impede, contudo, que a in­constitucionalidade seja declarada por violação de preceitos ou princípios constitucionais não invocados [v. artigo 51º, nº 5, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional)]. II — Fundamentação 1 — Vejamos, então, a 1.ª questão, que é — repete-se — a seguinte: A norma constante do artigo 30º, nº 3, do Decreto-Lei nº 98/84, de 29 de Março, ao conferir às assembleias regionais poderes para definir os indicadores que hão-de servir para a distribuição pelos municípios da respectiva região da verba global, que, para elas, é transferida pelo Fundo de Equilíbrio Financeiro, viola o artigo 114º, nº 2, conjugado com o artigo 168º, nº 1, alínea r), da Constituição? 1.1 — A Lei nº 1/79, de 2 de Janeiro, que veio estabelecer o regime das finanças locais, impunha, no seu artigo 29º, que se procedesse à sua revisão. Foi a tal revisão que veio proceder o Decreto-Lei nº 98/84, de 29 de Março, editado ao abrigo da autorização legislativa concedida pela Lei nº 19/83, de 6 de Setembro. Esta Lei nº 19/83 estabelece, de facto, no artigo 1º, que é conce­dida autorização ao Governo para: c) Rever o regime em vigor em matéria de finanças locais, por alteração da Lei nº 1/79, no sentido da sua clarificação e adequação às novas atribuições das autarquias locais. No artigo 4º, na parte que aqui importa, preceitua o seguinte: A revisão da Lei nº 1/79, de 2 de Janeiro, a que se refere a alínea c) do artigo 1º do presente diploma, tem o seguinte sentido e objectivos: a) Aperfeiçoar o regime financeiro local à luz dos ensinamentos recolhidos com a aplicação da Lei nº 1/79; b) Esclarecer a fórmula de cálculo do montante global anual dos recursos financeiros autárquicos; [...] f) Aperfeiçoar os mecanismos reguladores da repartição dos recursos financeiros pelos municípios e freguesias. 1.2 — O citado Decreto-Lei nº 98/84 preceitua, no seu artigo 3º, nº 1, que constituem receitas do município, entre outras, «uma participação no Fundo de Equilíbrio Financeiro». Este Fundo «corresponde ao montante a transferir do Orçamento do Estado para os municípios» (artigo 5º), sendo tal montante calculado com base na percentagem global das despesas do Estado (correntes, umas, de capital, outras), enunciadas no artigo 6º O montante global, que cabe a cada município nessas transferências financeiras da administração central para a local, figurará num mapa publicado em anexo ao Orçamento do Estado (citado artigo 6º, nº 3) e será calculado de acordo com os critérios enunciados pelo artigo 7º, nº 1, alíneas a) a e). Quanto aos municípios insulares, a verba a transferir do Fundo de Equilíbrio Financeiro será atribuída a cada região de forma global (artigo 30º, nº 2), para o que a tal Fundo se deduzirá o respectivo montante (artigo 7º, nº 2). Esta verba global — toda ela , e não apenas uma sua certa parte, como se verá seguidamente — será, depois, em cada região autónoma, repartida pelos municípios, de acordo com indicadores ou critérios a definir pelas respectivas assembleias regionais. 1.3 — O citado artigo 7º, quando, no seu nº 1, define o modo de repartição do Fundo de Equilíbrio Financeiro, depois de dizer que 5 % dele é distribuído igualmente por todos os municípios, estabelece que os restantes 95 % são-lhes atribuídos de acordo com os critérios seguintes: na razão directa do número de habitantes (45%); na razão directa da área (10%); na razão directa da capitação dos impostos directos (15 %); na razão directa do número de freguesias (5 %), e em função das carên­cias (20%) — [alíneas d) a e)\. E, para além disso, estipula que o mon­tante atribuído em consideração das carências seja repartido em função dos seguintes indicadores: na razão directa da orografia (5%); na razão inversa do desenvolvimento sócio-económico (10%); na razão directa do turismo (2%), e na razão directa da emigração (3%)— [alínea e)]. Por sua vez, o artigo 30º, nº 3, que é a norma que ora reza assim: 3 — A verba global a transferir pelo Fundo de Equilíbrio financeiro para os municípios das regiões autónomas i aos mesmos de acordo com indicadores a definir respectivas assembleias regionais, [sublinhou-se.] 1.4 — Primo conspectu , dir-se-ia que às assembleias regionais se conferiram poderes para definir tão-somente os indicadores que nas regiões autónomas, hão-de servir para aferir as carências enquanto critério entre outros, de distribuição do Fundo de Equilíbrio Financeiro. Dito de outro modo: nas regiões autónomas, a verba global que, deduzida do Fundo a cada uma delas é atribuída, haveria de ser distribuída pelos municípios em obediência aos critérios enunciados nas alíneas a) a e) do n º 1 do artigo 7º, com excepção apenas do montante correspondente a carências: este é que, se as assembleias regionais assim o decidissem poderia ser repartido em função de indicadores diversos dos apontados na referida alínea e), ou, ao menos, com uma valorização diferente da que deles aí se faz. Esta interpretação ver-se-ia, de algum modo, reconfortada pelo Decreto Legislativo Regional nº 1/85/M, de 11 de Janeiro. De facto, as alíneas a) a e ) do nº 1 do seu artigo 8.limitam-se a reproduzir as alíneas a) a e) do nº 1 do artigo 7º do Decreto-Lei nº 98/84, com excepção, justamente, da parte em que se enunciam e valorizam os indicadores que hão-de servir para aferir as carências -se, nessa alínea e), que os 20 %, atribuídos em função das carências hão-de repartir-se de acordo com os seguintes indicadores : 10 %, na razão directa das assimetrias de índole estritamente económica; 8 %, na razão inversa do desenvolvimento sócio-cultural ; 2%, na razão directa do turismo. Diga-se, entretanto, à guisa de parêntesis, que, no tocante aos Açores, o Decreto Legislativo Regional nº 34/84/A, de 13 de Novembro limitou-se a «estender [...] o novo regime das finanças locais às câmaras municipais» respectivas, sem definir, desde já , «os indicadores para distribuição das verbas pelos municípios da Região» ( apud preâmbulo). 1.5 — Apesar das aparências, às assembleias regionais das regiões autónomas não se cometeu tão-somente a definição dos indicadores , de acordo com os quais se hão-de distribuir os 20 % atribuídos aos municípios insulares em função das carências. De facto, o mencionado nº 3 do artigo 30º preceitua — como se viu — que é a verba global a transferir para os municípios das regiões autónomas pelo Fundo de Equilíbrio Financeiro — e não apenas uma parte dela — que há-de ser «afectada aos mesmos de acordo com indicadores a definir pelas respectivas assembleias regionais». Um legislador razoável — e é esse que o intérprete tem de presumir — sabe exprimir o seu pensamento em termos adequados (cf. artigo 9°, nº 3, do Código Civil). Por isso, se o Decreto-Lei nº 98/84 quisesse conferir poderes às as­sembleias regionais para definir tão-só os indicadores com base nos quais se houvessem de repartir os 20 % atribuídos em função das carências, tê-lo-ia dito de forma clara e inequívoca. Não o fez e, ao contrário, reportou--se à verba global . Daí se haveria logo de concluir que é a repartição dessa verba global — e não outra — que se entregou aos critérios a definir pelas assembleias regionais. Há, porém, mais. Logo no nº 2 do artigo 7º se diz que «ao Fundo de Equilíbrio Financeiro é deduzido o montante atribuído aos municípios das regiões autónomas, nos termos do artigo 30º». Depois, no nº 2 do artigo 30º, estabeleceu-se que «aos municípios das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira o Fundo de Equilíbrio Financeiro será distribuído de forma global». Tudo isto, conjugado com a disciplina que se contém no nº 3 do citado artigo 30º, leva à conclusão atrás apontada: a de que se cometeu às assembleias regionais insulares a definição dos critérios de repartição das verbas que a administração central transfere para a administração local através do Fundo de Equilíbrio Financeiro. Transferência que é feita de uma forma global . A utilização do vocábulo critérios, no artigo 7º, nº 1, e da expressão indicadores, na sua alínea e), e bem assim no artigo 30º, nº 3, não tem, pois, o alcance que, à primeira vista, se lhe poderia pensar atribuir. Entre essas duas expressões existe, antes, perfeita homologia , como, de resto, se pode ver do seguinte passo do preâmbulo do próprio Decreto -Lei nº 98/84: Quanto aos municípios das regiões autónomas, é-lhes afectada uma percentagem do Fundo de Equilíbrio Financeiro cuja atribuição será efectuada de acordo com critérios a definir pelas assembleias regionais , [sublinhou-se.] 1.6 — Importa, assim, saber se a definição daqueles indicadores ou critérios pode (ou não) ser feita pelas assembleias legislativa regionais. Pois bem: Do confronto entre a alínea b) do artigo 229º com o a da Constituição resulta que as assembleias regionais das regiões autónomas têm competência para: b) Regulamentar […] as leis gerais emanadas dos órgãos de soberania que não reservem para estes o respectivo poder regulamentar. [alínea b) do artigo 229º]. Assim sendo, se a normação regional, que, por força do n º 3 do artigo 30º do Decreto-Lei nº 98/84, terá de conter a definição daqueles indicadores ou critérios de repartição da verba global a transferir do Fundo de Equilíbrio Financeiro para cada uma das regiões, puder qualificar-se como regulamentar, não restarão dúvidas de que será constitucionalmente legítimo às assembleias regionais proceder a essa definição. De facto, o legislador nacional não reservou para si o poder de regulamentar o Decreto-Lei nº 98/84 e, além disso, cometeu-o àquelas assembleias. Dispõe, na verdade, o artigo 30º, nº 1, deste diploma: 1 — A aplicação do presente diploma às regiões autónomas será regulamentada por decreto das respectivas assembleias com as adaptações justificadas pela especificidade [sublinhou-se.] Poderá, então, a definição daqueles critérios ser feita por regulamento? Decididamente se responde que não. Os regulamentos que o preceito acabado de transcrever prevê são regulamentos de execução , se necessário na modalidade de regulamentos integrativos . Regulamentos de execução que, por o serem, se não podem substituir à lei, contendo «regras de fundo», preceitos jurídicos «novos» ou «originários», antes têm de limitar-se a «repetir», embora de maneira clara ou, pelo menos, mais clara, os preceitos ou «regras de fundo», que o legislador editou. Regulamentos integrativos que, não visando já interpretar ou repetir por outras palavras a vontade do legislador, se destinam, contudo, tão-somente a enunciar os pormenores ou minúcias que o legislador omitiu e que são necessárias à aplicação da lei (no caso, à sua adaptação às especificidades regionais). Exemplo de norma destinada a esta adaptação é, por exemplo, a constante do artigo 2º do Decreto Legislativo Regional nº 34/84/A, de 13 de Novembro, que preceitua: Art . 2º As referências feitas, bem como as competências atribuídas pelo Decreto-Lei nº 98/84, de 29 de Março, ao Governo da República ou aos seus departamentos serão exercidas e consideram-se reportadas, na Região, ao Governo Regional e aos respectivos departamentos. Em qualquer destas hipóteses, trata-se, porém, de uma actividade que visa a boa execução da lei. O que se edita é normação secundária ou consequente, e não disciplina inicial ou primária (sobre o tema dos regulamentos, v. Afonso R. Queiró , «Teoria dos regulamentos», in Revista de Direito e Estudos Sociais , ano XVII, 1980, pp. 1 e segs .). Disciplina inicial ou primária de relações jurídicas dimanando das assembleias regionais só podem contê-la os decretos legislativos regionais, editados sobre matérias de interesse específico para as regiões, nos termos da alínea a) do artigo 229º da Constituição. Decretos legislativos regionais que — ao menos, para certa doutrina — «não são, materialmente vistas as coisas, senão regulamentos autónomos a que a Constituição atribui de forma legislativa e força de lei» (Afonso R. Queiró , loc . cit., p. 16). Repete-se, pois: no artigo 30º, nº 1, do Decreto-Lei nº 98/84 apenas se prevêm regulamentos de execução . E nem sequer poderia ser de outro modo. De facto — e como adiante melhor se verá —, encontramo-nos em domínio da reserva de lei, a saber: o da definição do regime das finanças locais [v. artigo 168º, nº 1, alínea r), da Constituição]. Ora, «a reserva de lei constitui [. .. ] limite do poder regulamentar: a Administração não poderá editar regulamentos (independentes ou autónomos) no domínio dessa reserva. Os únicos regulamentos que nas ma­térias reservadas à lei se admitem são os regulamentos de execução» (Afonso R. Queiró , loc . cit., p. 17). E mais adiante escreve: «a disciplina integral destas matérias (salvos os pormenores de execução sempre susceptíveis de ser versados em regulamentos [. . .]) cabe em princípio à lei, excepcionalmente a decretos-leis — e nunca a regulamento». 1.7 — A norma sub judicio — a que se contém no artigo 30º, nº 3, do Decreto-Lei nº 98/84 — atribui, porém, às assembleias regionais insulares poderes para editar disciplina inicial ou primária, «regras de fundo», preceitos jurídicos «novos», pois se trata — como se viu ( supra nº II, n. os 1.3 e 1.4) — de definir os critérios de distribuição da verba global que, do Orçamento do Estado, é transferida por cada uma das regiões autónomas para ser atribuída aos respectivos municípios. Tal norma, pois, requerendo normação que não pode caber dentro dos limites do regulamento, não encontra cobertura na alínea b) do ar­tigo 229º da Constituição. 1.8 — Pergunta-se, então: não será que a matéria em causa, conquanto de natureza legislativa, possa ser objecto de decreto legislativo regional? A resposta é negativa. As regiões autónomas gozam de autonomia político-adminsitrativa — o que, além do mais, significa que dispõem de autonomia normativa , de poderes para emanar normas jurídicas constitutivas de ordenamento próprio. Essa autonomia normativa há-de, porém, exercer-se nos quadros do artigo 229º, alínea a), da Constituição, que preceitua: a)Legislar, com respeito da Constituição e das leis gerais da República, em matérias de interesse específico para as regiões que não estejam reservadas à competência própria dos órgãos de soberania. Se se tratar de matérias incluídas na reserva de competência da Assembleia da República ou do Governo, mas que lhes digam respeito, as regiões, para além de disporem de poder de iniciativa legislativa [v. artigo 229º, alínea c)], gozam do direito de se pronunciar sobre elas, seja por sua iniciativa, seja sob consulta daqueles órgãos de soberania [v. artigo 229º, alínea q)]. Estas questões são as que, saindo já fora da competência dos órgãos regionais, todavia respeitam a interesses predominantemente regionais, ou pelo menos merecem, no plano nacional, um tratamento específico no que toca à sua incidência nas regiões, em função das particularidades destas e tendo em vista a relevância de que se revestem para esses territórios (v. Parecer da Comissão Constitucional nº 2/82, que remete, citando-o, para o Parecer nº 20/77, in Pareceres da Comissão Constitucional , vol . 18, p. 107). 1.9 — As regiões autónomas foram ouvidas sobre o Decreto-Lei nº 98/84 (v. preâmbulo). E, justamente, porque o regime das finanças locais é matéria que, em certos aspectos, pode justificar um tratamento específico no que respeita à sua incidência nas regiões autónomas. Tal matéria tem, na verdade, relevo ou âmbito «nacional», e não meramente «continental», e, além disso, apresenta alguma especificidade ou peculiaridade relevante no que concerne às regiões autónomas (cf. citado Parecer nº 2/82 da Comissão Constitucional). 1.10 — Bem se compreende que sobre as matérias da competência dos órgãos de soberania as regiões autónomas não possam legislar. De facto, como se escreveu no Acórdão nº 91/84 deste Tribunal ( Diário da República , l. a série, de 6 de Outubro de 1984): O carácter unitário do Estado e os laços de solidariedade que devem unir todos os portugueses exigem que a legislação sobre matérias com relevo imediato para a generalidade dos cidadãos seja produzida pelos órgãos de soberania (Assembleia da República ou Governo), devendo ser estes a introduzir as especialidades [...] que se mostrem necessárias, designadamente, por, no caso, concorrerem interesses insularmente localizados. 1.11 — Pois bem: não seria difícil reconhecer a existência do interesse específico , a que se refere a alínea a) do artigo 229º da Constituição quando se trata de definir — e ou de quantificar — os indicadores que hão-de servir para aferir as carências dos municípios insulares, para efeito da repartição das verbas que para eles são transferidas pela administração central (v., supra , II, n. os 1.3 e 1.4). Na verdade, como se escreveu no Acórdão deste Tribuna ( Diário da República , 1.ª série, de 6 de Abril de 1985): Poderão tipicizar-se como de interesse específico das regiões autónomas aquelas matérias que lhes respeitem exclusivamente ou que nelas exijam um especial tratamento por ali assumirem peculiar configuração- Tal interesse específico já, porém, não se descortinaria quando se tratasse de definir os demais critérios de distribuição da verba que, de forma global, é transferida pelo Orçamento do Estado para cada região a fim de aí ser distribuída pelos respectivos municípios. Independentemente disso, recorda-se que não basta que exista interesse específico para que as regiões autónomas possam legislar sobre determinada matéria. Necessário é também, como se disse, que essa matéria se não inscreva na reserva de competência da Assembleia da República ou do Governo. Ora, no caso — já se disse e ver-se-á com maior detalhe daqui pouco — está-se no domínio da reserva de lei. Assim sendo, as assembleias regionais nem sequer para definir (e ou quantificar) os indicadores destinados a aferir as carências dos municípios insulares, para o efeito de por eles se repartirem as verbas transferidas para tal fim pela administração central, poderiam editar normas jurídicas. E isso é assim, mesmo que — não obstante o disposto no artigo 201 º nº 1, alínea c), da Constituição — houvesse de entender-se que em certos casos, o desenvolvimento das «bases gerais dos regimes jurídicos contidas em leis que a elas se circunscrevam» podia fazer-se por decretos legislativos regionais — questão esta que, aqui, não carece de ser esclarecida. É que, no que toca ao regime das finanças locais, a lei (ou o decreto -lei parlamentarmente autorizado) não pode ficar-se pela definição do travejamento de tal regime, pela fixação das respectivas bases ou ideias stan dards. Ou seja: a lei das finanças locais não pode ser uma lei quadro . Por conseguinte, as assembleias regionais insulares não podem editar normação destinada a definir os critérios de repartição da verba global, que é deduzida ao Fundo de Equilíbrio Financeiro, para ser atribuída, em cada região autónoma, aos respectivos municípios. 1.12 — Dir-se-á, porém: embora a definição do regime das finanças locais seja matéria incluída na reserva de competência da Assembleia da República, o certo é que esta considerou que, no que concerne às regiões autónomas, essa competência se esgota com a atribuição de uma verba global às mesmas. E esse seria, justamente, o sentido da delegação de poderes do Governo nas assembleias regionais, que se contém no nº 3 do artigo 30º em causa [v., supra, nº I, nº 2, alínea c)]. Que pensar disto? A reserva de competência da Assembleia da República — trate-se de reserva absoluta ou de reserva relativa — não abrange, é certo, toda a regulamentação da matéria reservada, mas apenas o que, «pelo seu relevo, deva, substancialmente, constituir matéria de lei «(v. Parecer da Comissão Constitucional nº 3/82, in Pareceres da Comissão Constitucional , vol . 18, pp. 141 e segs .; v. também o Acórdão deste Tribunal nº 91/84, já citado). Dito de outro modo: tal reserva abarca tão-somente o que — designadamente pelo importante significado político que assume — deva ser posto «na directa dependência da regra da maioria» (Pareceres da Comissão Constitucional n. os 22/79 e 9/81, in Pareceres da Comissão Constitucional, vols . 9º, pp. 39 e segs ., e 11º, p. 245, respectivamente; v. também J. M. Cardoso da Costa, Sobre as Autorizações Legislativas da Lei do Orçamento , Coimbra, 1982, p. 17 e nota 22). Simplesmente, não é a Assembleia da República quem tem de definir o que é — e o que não é — matéria de lei. Essa definição fê-la a Constituição nos artigos 167º e 168º. Ora, o artigo 168º, nº 1, alínea r), preceitua: 1 — É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização do Governo: [...] r) Estatuto das autarquias locais, incluindo o regime das finanças locais. 1.13 — Assim sendo, o que, por isso, importa saber é se a matéria aqui questionada — definição dos critérios de distribuição pelos municípios das regiões autónomas da verba global que, para cada uma delas é transferida do Orçamento do Estado — tem (ou não) relevo capaz de justificar a sua colocação «na directa dependência da regra da maioria» Decididamente se responde que sim. Vejamos: O artigo 240. °, nº 2, da Constituição estabelece: 2 — O regime das finanças locais será estabelecido por lei e visará a justa repartição dos recursos públicos pelo Estado e pelas autarquias e a necessária correcção de desigualdades entre autarquias do mesmo grau. A democracia reclama uma distribuição equitativa dos recursos públicos, não só entre o Estado e as autarquias locais, como também entre as várias autarquias entre si. De facto, as autarquias locais só poderão ser verdadeiramente autónomas, só poderão ser poder local , se dispuserem de meios financeiros; necessários ao cumprimento dos seus fins. Por conseguinte, tratando-se de definir os critérios de distribuição pelos municípios insulares das verbas transferidas para cada região pelo Orçamento do Estado, estando, assim, em causa um instrumento necessário para a autonomia do poder local, exige-se, naturalmente, a intervenção do legislador. Tal intervenção é necessária pela mesma razão, de resto, por que se exige que seja a lei a definir os critérios de distribuição do Fundo de Equilíbrio Financeiro pelos municípios do continente: em ambos os casos do que se trata é de assegurar que, ao proceder à distribuição das verbas se vise «a necessária correcção de desigualdades entre autarquias do mesmo grau» (citado artigo 240º, nº 2). 1.14 — A intervenção do legislador reveler-se-á sobremaneira necessária, quando se entender, com certa doutrina, que «a liberdade individual se torna difícil se não se achar amparada pela dos outro grupos sociais intermédios» (Álvaro d'Ors , Una Introduccion al Estudo del Derecho a Madrid, 1982, p. 116. v., identicamente, J. Batista Machado Participa ção e Descentralização ..., Coimbra, 1982, pp. 65 e segs .), Na realidade, quando, ao cabo e ao resto, se veja na autonomia local uma exigência da própria autonomia da pessoa humana, da sua liberdade, então, não será difícil reconhecer-se, aí, ainda o radical garantístico da reserva de lei — o legislador visto como garante das liberdades. Seja, pois, qual for o âmbito que, em definitivo, deva reconhecer-se à reserva de lei tendo por objecto o «regime das finanças locais», uma coisa é certa: o Governo, no uso da autorização legislativa que lhe foi conferida pela Assembleia da República, delegou nas assembleias regionais das regiões autónomas poderes para legislar sobre matéria que, seguramente, se inscreve naquele domínio reservado. 1.15 — Perguntar-se-á, então, por último: essa delegação de poderes legislativos, que o Governo fez nas assembleias regionais insulares, não será constitucionalmente legítima? A resposta é, sem hesitações, negativa. A delegação de poderes carece sempre de uma habilitação legal . E, no caso, requeria, como vai ver-se, uma autorização constitucional expressa , que não existe. De facto, os poderes, que integram a competência dos órgãos de soberania, têm carácter funcional. Tal competência é, por isso mesmo, inalienável. A delegação de poderes tem de ser sempre prevista por lei de valor hierárquico-formal igual ao da lei que, originariamente, atribui a competência delegada. Ora, a competência dos órgãos de soberania é a definida pela Constituição. Preceitua, com efeito, o artigo 113º, nº 2: 2 — A formação, a composição, a competência e o funcionamento dos órgãos de soberania são os definidos na Constituição, [sublinhou-se.] Os poderes constitucionalmente atribuídos a um órgão de soberania só podem, pois, ser delegados quando tal delegação for autorizada pela própria Constituição. Dispõe, na verdade, o artigo 114º, nº 2: 2 — Nenhum órgão de soberania , de região autónoma ou de poder local pode delegar os seus poderes noutros órgãos, a não ser nos casos e nos termos expressamente previstos na Constituição e na lei. [Itálico nosso.] Assim, apesar da referência feita à lei no preceito acabado de transcrever, o legislador ordinário é absolutamente incompetente para fazer qualquer delegação de poderes que a Constituição atribua aos órgãos de soberania. Se o pudesse fazer, correr-se-ia o risco de subverter o princípio da separação dos poderes, consagrado no artigo 114º, nº 1, da Constituição, e bem assim a regra da fixação constitucional da competência dos órgãos de soberania, constante, como já se viu, do artigo 113-°, nº 2 (v., neste sentido, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 1980, pp. 265 e 266). Por conseguinte, a lei só pode delegar poderes quando estes sejam, eles próprios, conferidos por lei, como é o caso, por exemplo, dos que integram a competência dos órgãos de poder local (v. artigo 239- 0 da Constituição). 1.16 — No caso sub iudicio , a delegação que se contém no artigo 30º, nº 3, do Decreto-lei nº 98/84 respeita a poderes legislativos que, antes, haviam sido delegados no Governo pela Assembleia da República, ao abrigo do artigo 168º, nº 1, da Constituição. Trata-se, assim de uma subdelegação de poderes. Tal subdelegação de poderes é, porém, ilegítima. Desde logo, como delgatus non potest delegare , a subdelegação sempre careceria de ser expressamente consentida pelo acto de delegação — coisa que, no caso, não acontece, já que não consta da atrás citada Lei nº 19/83. Depois, tratando-se de poderes que integram a competência de um órgão de soberania, aquela Lei nº 19/83 só poderia legitimamente autorizar uma subdelegação se, para tanto, houvesse cobertura constitu­cional — coisa que, já se viu, não existe. 1.17 — Concluindo, pois, este ponto: a norma constante do artigo 30º, nº 3, do Decreto-Lei nº 98/84, de 29 de Março, viola o artigo 114º, nº 2, conjugado com o artigo 168º, nº 1, alínea r), da Constituição. 2 — Vejamos a 2. ª questão , a saber: a mencionada norma — a que se contém no artigo 30º, nº 3, do Decreto-Lei nº 98/84— viola o artigo 240º, nº 2, da Constituição? 2.1 — Este preceito da Lei Fundamental reza assim: 2 — O regime das finanças locais será estabelecido por lei e visará a justa repartição dos recursos públicos pelo Estado e pelas autarquias e a necessária correcção de desigualdades entre autarquias do mesmo grau. Os recursos públicos hão-de, pois, ser distribuídos com justiça pelo Estado e pelas autarquias locais. E, ao fazer-se a repartição entre estas, há-de visar-se a «correcção de desigualdades», o que exigirá que as verbas a atribuir aos vários municípios sejam — ao menos em boa parte dos casos — de montante desigual. Hão-de, com efeito, favorecer-se os municípios com maiores carências e, por isso mesmo, com um menor grau de desenvolvimento sócio-económico . Tal como se hão-de compensar os municípios cujas receitas próprias atinjam níveis menos elevados. O Fundo de Equilíbrio Financeiro haverá, assim, de ser — todo ele — repartido com base em critérios objectivos capazes de responder àquele imperativo constitucional. Critérios que, por isso, haverão de ser fixados pelo legislador nacional , pois só desse modo se evitará que, dos vários indicadores — população, área, capitação dos impostos directos, número de freguesias e carências (cf. artigo 7º, nº 1, do Decreto-Lei nº 98/84 —, se tomem uns e desprezem outros, e bem assim que se valorizem diferentemente consoante estejam em causa municípios do continente ou das regiões autónomas, em termos de se menosprezar o apontado objectivo constitucional da correcção das desigualdades entre autarquias do mesmo grau. 2.2 — Não se contesta que os indicadores de carências [v. alínea d) do nº 1 do artigo 7º do Decreto-Lei nº 98/84], no tocante aos municípios insulares, fossem melhor definidos pelas assembleias das regiões autónomas do que pelo legislador nacional, se este houvesse que agir só por si. E também não se questiona que a realidade insular possa exigir — ou, ao menos, aconselhar — uma quantificação desses indicadores — relativos às carências — diferente daquela que o legislador fez para os municípios do continente. Não seria isso que iria ferir o nº 2 do [v. o Decreto Legislativo Regional nº 1/85/M, de 11 de Janeiro que nas alíneas a) a d) do nº 1 do seu artigo 8º reproduziu as alíneas a) a d) do nº 1 do artigo 7º do Decreto-Lei nº 98/84, mas que na alínea e) substituiu por outros os indicadores constantes da alínea e) do n º 1 daquele artigo 7º]. 2.3 — O citado nº 2 do artigo 240º da Lei Básica não consente, porém que se remeta para as assembleias regionais a fixação dos indicadores ou critérios de distribuição, entre os municípios insulares, da verba que a estes é atribuída. E isso é assim, quer — como é o caso — se lhes cometa a definição de todos esses indicadores, quer apenas a dos que identificam as carências. As regiões autónomas tinham, no caso, o direito de ser ouvidas sobre a matéria. E foram-no. Esse direito de audição, que as peculiaridades insulares lhes atribuíam não podia, no entanto, transformar-se em direito de editar legislação. 2.4 — Concluindo, portanto: a norma constante do artigo 30 º do Decreto-Lei nº 98/84 viola também o nº 2 do artigo 240 º da Constituição. 3 — Passemos à 3.ª questão: a norma constante do artigo 7 º , n.º 2, conjugado com o artigo 30º, nº 2, do mesmo Decreto-Lei n.º 98/84 no ponto em que, do Fundo de Equilíbrio Financeiro, manda atribuir uma verba global a cada uma das regiões autónomas, para aí ser distribuída pelos municípios respectivos, viola o citado artigo 240 º, n.º 2 da Constituição? Vejamos: 3.1 — O artigo 7º, nº 2, preceitua: 2 — Ao Fundo de Equilíbrio Financeiro é deduzido o montante atribuído aos municípios das regiões autónoma do artigo 30º Por sua parte, o artigo 30º, nº 2, estabelece: 2 — Aos municípios das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira o Fundo de Equilíbrio Financeiro será distribuído de forma global. 3.2 — E certo que o Decreto-Lei nº 98/84 não determina como se deve calcular esta verba global , a transferir do Orçamento do Estado para o conjunto dos municípios de cada uma das regiões autónomas. Daqui não decorre, porém, que ela haja de ser calculada de modo a favorecer (ou a prejudicar) o conjunto das autarquias insulares em detrimento (ou em favor) das do continente. Razoável é pensar — como faz „ o autor da norma — que, à falta de outros critérios legais, a Lei do Orçamento haverá que ater-se aos que se acham enunciados no nº 1 do artigo 7-° para a determinação das verbas a atribuir a cada um dos municípios do continente. E, de facto, existem boas razões para acreditar que assim tem de ser. Desde logo, notar-se-á que o artigo 30º, nº 2, diz que o montante do Fundo de Equilíbrio Financeiro a atribuir aos municípios das regiões autónomas será distribuído de forma global — o que pode querer significar que o cálculo dessa verba global haverá de fazer-se pelo recurso aos indicadores ou critérios do nº 1 do artigo 7º Depois, como o Fundo de Equilíbrio Financeiro é uma percentagem global das despesas do Estado, a fixar, em cada ano, na Lei do Orçamento (artigo 6º); como a verba global, a atribuir ao conjunto dos municípios insulares, se há-de traduzir numa percentagem daquele montante (v. preâmbulo), vindo, assim, o quantitativo, que cabe ao conjunto dos municípios do continente, a corresponder à diferença entre a verba total do Fundo e a verba atribuída ao conjunto dos municípios insulares (v. artigos 7º, nº 2, e 30º, nº 2); logo se vê que aquele cálculo há-de obedecer, no conjunto, aos indicadores ou critérios do artigo 7º, nº 1, sob pena de se alterar a verba destinada aos mu­nicípios continentais. Finalmente, um legislador razoável, se quisesse estabelecer um diferente modo de calcular o montante do Fundo a atribuir aos municípios regionais, tê-lo-ia dito expressamente — e não o fez. A percentagem do Fundo a atribuir globalmente ao conjunto dos municípios de cada uma das regiões autónomas há-de, pois, ser calculada pelo modo como se calculam as verbas que se atribuem a cada um dos municípios do continente. Vistas assim as coisas, não existe aqui violação do princípio da igualdade, por favorecimento (ou desfavorecimento) dos municípios insulares relativamente aos continentais. 3.3 — Um tal princípio não seria, sem mais, violado mesmo que o Decreto-Lei nº 98/84 permitisse que o montante global, a transferir para os municípios de cada uma das regiões autónomas, fosse calculado de modo diverso do apontado. Na verdade, é a Assembleia da República quem fixa essa verba. Fá-lo, justamente, na Lei do Orçamento do Estado (artigo 6º, nº 1). E este — ao menos num certo modo de encarar as coisas — tanto pode manter-se vinculado à lei anterior — no caso, ao citado Decreto-Lei nº 98/84 — como não. Ora, se a Assembleia da República fixasse, na Lei do Orçamento do Estado, com destino ao conjunto dos municípios de cada uma da regiões autónomas, uma verba global diferente da que resultasse da aplicação dos critérios ou indicações constantes do artigo 7º, nº 1, poderia ainda sustentar-se que isso tão-só significaria que tal lei havia revogado, nessa parte, e para aquele ano, o citado artigo 7º, nº 1. Sendo assim, não haveria nisso qualquer inconstitucionalidade, desde que, claro está, os critérios de repartição utilizados se não revelassem inidóneos para prosse­guir o objectivo constitucional da correcção das desigualdades entre autarquias do mesmo grau. Na verdade, ainda quando se entendesse que aquele Decreto-Lei nº 98/84 era, relativamente, à Lei do Orçamento, uma lei reforçada, ainda então se poderia concluir que ele não tinha força ou valor hierárquico superior ao da Lei do Orçamento (cf. Gomes Canotilho , «A lei do orçamento na teoria da lei», in Estudos em Homenagem ao Prof Doutor j. J. Teixeira Ribeiro , II, pp. 58 e segs .). Com isto, porém, só se responde a um aspecto da questão. A saber: ao facto de a lei não dar resposta expressa ao modo de determinar o mon­tante global a transferir para os municípios de cada uma das regiões. De fora fica, contudo, uma outra questão, qual seja a de saber como se vai repartir essa verba global: não o dizendo do Decreto-Lei nº 98/84 e não sendo, como se viu, legítimo que o venha a dizer o legislador regional — embora aquele lhe cometesse esse encargo —, não há um critério que possa servir para a repartição dessa verba pelos vários municípios insulares. Ora, da regra constitucional constante do artigo 240º, nº 2, resulta, como se viu, a imposição para o legislador nacional de fixar os critérios de repartição do Fundo de Equilíbrio Financeiro por todos os municípios, sejam do continente, sejam das regiões autónomas, pois que só assim será possível reparti-lo mediante critérios objectivos, capazes de promover a correcção de desigualdades. 3.4 — Assim sendo: as normas constantes dos artigos 7º, nº 2, e 30º, nº 2, violam, pois, o artigo 240º, nº 2, da Constituição. 4 — O regime do Decreto-Lei nº 98/84, de 29 de Março, designadamente o constante das normas jurídicas que vêm questionadas, entra em vigor no dia imediato ao da publicação (cf. nº 1 do artigo 35º). Por isso, se a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, houvesse de operar, aqui, ex tunc , como é de regra (cf. artigo 282º, nº 1, da Constituição), ir-se-ia criar uma situação de forte perturbação. Ora, uma das funções do direito é, justamente, a de oferecer segurança à vida social [cf. Castanheira Neves, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 105º, p. 260, nota 80). Donde corre que a segurança jurídica reclama que, neste caso e ao abrigo do disposto no nº 4 do ar­tigo 282º da Constituição, se limitem os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, por forma a que eles se produzam apenas a partir da data da publicação deste acórdão no Diário da República. III — Decisão Nestes termos, decide-se declarar, com força obrigatória geral, a incons­titucionalidade das normas constantes dos artigos 7º, nº 2, e 30º, n. os 2 e 3, do Decreto-Lei nº 98/84, de 29 de Março. E, nos termos do artigo. 282º, nº 4, da Constituição, restringem-se os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, por forma a que os mesmos se produzam apenas a partir da data da publicação deste acórdão no Diário da República . Lisboa, 18 de Março de 1986. — Messias Bento — Antero Alves Mon­teiro Dinis — José Martins da Fonseca — Mário de Brito — Antônio Luís Correia da Costa Mesquita — José Magalhães Godinho — Mário Afonso — Vital Moreira — Raul Mateus (vencido, nos termos da decla­ração de voto junta) — Armando Manuel Marques Guedes. DECLARAÇÃO DE VOTO 1 — Votei o acórdão enquanto estabelece uma limitação de efeitos à declaração de inconstitucionalidade e enquanto nele se conclui na sequência de argumentação que plenamente acompanhei — que a norma do artigo 30º, nº 3, do Decreto-Lei nº 98/84, de 29 de Março viola o artigo 114º, nº 2, em conjugação com o artigo 168º, nº 1, alínea r) da Constituição. Mas no mais, e em maior ou menor grau, dele discordei. 2 — Não tive por correcta a interpretação isolada que se fez do artigo 240º, nº 2, da Constituição, a ponto de se considerar que ele, por si só, não consente «que se remeta para as assembleias regionais afixação dos indicadores ou critérios de distribuição, entre municípios insulares, da verba que a estes é atribuída». Antes entendi que esse preceito, ao dispor que «o regime das finanças locais será estabelecido por lei e visará a justa repartição dos recursos públicos pelo Estado e pelas autarquias e a necessária correcção de desigualdade entre as autarquias do mesmo grau», está afinal a delimitar o conteúdo e alcance da reserva de competência legislativa, em favor da Assembleia da República, constante do artigo 168º, nº 1, alínea r), da Constituição, em conjunto com o qual, aliás, tem necessariamente de ser lido. Nesta visão conjunta de duas normas constitucionais, já aceite — e nesse sentido votei — que a norma do artigo 30º, nº 3, do Decreto-Lei nº 98/84 infringia efectivamente o artigo 240º, nº 2, da Constituição quando conjugado com o artigo 168º, nº 1, alínea r). De facto, nesta perspectiva, aquela norma atribuía às assembleias regionais, e indevidamente, competência normativa em matéria situada no domínio da reserva parlamentar. 3 — Por fim, entendi que quer a norma do artigo 7º, n.º2, quer a norma do artigo 30º, nº 2, do Decreto-Lei nº 98/84 não conflituavam com o preceituado no artigo 240º, nº 2, da Constituição, lido isoladamente, ou mesmo em articulação com o artigo 168º, nº 1 alínea r). Reza o nº 2 do artigo 7º que «ao Fundo de Equilíbrio Financeiro é deduzido o montante atribuído aos municípios das regiões autónomas nos termos do artigo 30º». Esta remissão para o artigo 30º do Decreto-Lei nº 98/84 não é para todo o artigo, mas, em boa lógica, unicamente para o segmento do mesmo que, de imediato, tem que ver com a dedu­ção, ou seja, para o nº 2 desse artigo 30º, cujo texto é o seguinte: Aos municípios das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira o Fundo de Equilíbrio Financeiro será distribuído de forma global. Consequentemente, estes dois preceitos, interpretados sobrepostamente , determinam apenas que ao Fundo de Equilíbrio Financeiro é deduzida, num primeiro momento, a verba global a atribuir aos municípios das regiões autónomas. Como se nota no acórdão — e a esta interpretação se aderiu —, a percentagem do Fundo a atribuir globalmente ao conjunto de municípios das regiões autónomas há-de ser calculada pelo modo como se calcu­lam as verbas a atribuir a cada um dos municípios do continente, não havendo nesta medida favorecimento ou desfavorecimento dos municípios insulares relativamente aos continentais. Não se vê, pois, como as normas ora em análise, que nada têm que ver com a ulterior repartição, município a município, da verba globalmente deduzida ao Fundo de Equilíbrio Financeiro com destino às regiões autónomas (não estabelecem critérios dessa repartição, nem apontam a entidade com competência para os definir), possam infringir, ou só o artigo 240. °, nº 2, da Constituição, ou mesmo este artigo 240º, nº 2, em articulação com o artigo 168º, nº 1, alínea r). — Raul Mateus .

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Esta decisão foi disponibilizada publicamente pelo Tribunal Constitucional.

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