Decisão

1 ? Em 24 de Setembro de 1985 foi julgado em processo sumário, na comarca da Ilha de Santa Maria, A., sob a acusa­ção de no dia anterior ter conduzido na via pública o velocípede com motor n.° ? sem estar habilitado a conduzir «viaturas au­tomóveis», infringindo, assim, o n.° 1 do artigo 46.° do Decreto-Lei n.° 39 672, de 20 de Maio de 1954, alterado pelo Decreto Regional n.° 21/80/A, de 11 de Setembro. O juiz, porém, recusando, por incons­titucionalidade, a aplicação desse Decreto Regional, concluiu que a trans­gressão cometida pelo arguido era a do artigo 54.°, n.° 1, do Código da Estrada e, nessa conformidade, condenou-o na multa de 600$ ou, em al­ternativa, em dois dias de prisão. Recorreu então o agente do Ministério Público, nos termos do ar­tigo 280.°, n. os 1, alínea a), e 2, da Constituição da República Portu­guesa, para o Tribunal da Relação de Lisboa, recurso que o juiz admitiu, não porém para a Relação, mas sim para o Tribunal Constitucional. Aqui o magistrado do Ministério Público alegou no sentido de que o Decreto Regional n.° 21/80/A «enferma de inconstitucionalidade or­gânica originária, por falta de poderes do órgão que o emitiu, o que basta para invalidar aquele diploma, sem necessidade, pois, de averiguar da exis­tência de vícios no plano da constitucionalidade material». Cumpre decidir. 2 ? O Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 39 672, de 20 de Maio de 1954, ocupa-se, em capítulos diferentes do seu título V, dos «condutores de veículos automóveis» (artigos 46.° a 53.°) e dos «con­dutores de velocípedes» (artigo 54.°). Para conduzir veículos automóveis exige o artigo 46.° a posse de «cartas de condução», que serão passadas pelas direcções de viação nas condições exigidas pelos artigos 47.° e se­guintes; a condução de velocípedes é permitida aos indivíduos habilita­dos com licença de condução, passada pela câmara municipal, ou com carta de condução de ciclomotores ou motociclos (citado artigo 54.°). A condução de veículos automóveis sem carta é punida com prisão e multa, nos termos do n.° 1 do referido artigo 46.°; a condução de velo­cípedes sem licença é punida apenas com multa, de acordo com o n.° 1 do artigo 54.° O citado Decreto Regional n.° 21/80/A, aprovado pela Assembleia Regional dos Açores em 28 de Julho, assinado pelo respectivo Presidente em 26 de Agosto e publicado no Diário da República, 1.ª série, de 11 de Setembro de 1980, regula, porém, em termos diferentes a condução de velocípedes com motor. Assim, no n.° 1 do seu artigo 1.° dispõe-se que, «sem prejuízo das licenças de condução passadas pelas câmaras mu­nicipais até à data da entrada em vigor do presente diploma, na Região Autónoma dos Açores a concessão do título de habilitação para a condu­ção de velocípedes com motor processar-se-á segundo o sistema fixado no artigo 47.° do Código da Estrada para ciclomotores»; e, por força do ar­tigo 7.° ? «as penalidades a aplicar por desrespeito às disposições do pre­sente diploma são aquelas constantes do Código da Estrada, nas partes finais dos artigos 46.°, n.° 1, e 47.°, n. os 7 e 12» ?, a condução de ve­locípedes com motor sem título de habilitação é punida como a condu­ção de veículos automóveis sem carta, isto é, com prisão e multa. Foi este diploma que o juiz se recusou a aplicar, por entender que ele viola o disposto nos artigos 167.°, alínea c) e e ), 229.°, n.° 1, alí­nea a), e 13.° da Constituição da República Portuguesa, na sua versão originária, já que, por um lado, «a necessidade de carta de condução para os condutores de velocípedes e a sua punição nos termos do artigo 46.° do Código da Estrada, por pôr em causa a liberdade dos cidadãos, com a possibilidade de aplicação de uma pena de prisão, e por não se tratar de matéria de interesse específico para a Região, é da competência exclu­siva da Assembleia da República ou do Governo, no uso de autorização legislativa», e, por outro lado, «o regime estabelecido no referido decreto regional vem criar uma inadmissível desigualdade dos cidadãos perante a lei, na medida em que, consoante a mesma conduta seja preenchida no território continental ou no território da Região, é punida com penas diferentes, o que não pode ser admitido em matéria criminal». Ora vejamos. 2.1 ? Violação dos artigos 167.°, alíneas c) e e ), e 229.°, n.° 1, alí­nea a), da Constituição. De acordo com o texto originário do artigo 229.° ? no domínio do qual foi editado o decreto regional em apreciação ?, as regiões autóno­mas são pessoas colectivas de direito público, contando-se entre as suas atribuições a de «legislar, com respeito da Constituição e das leis gerais da República, em matérias de interesse específico para as regiões que não estejam reservadas à competência própria dos órgãos de soberania» [ n.° 1, alínea a)]; o exercício dessa atribuição é precisamente da exclusiva com­petência da assembleia regional, nos termos do n.° 3 do artigo 233.° Não diz a Constituição o que deva entender-se por «interesse especí­fico» para as regiões. Coube, por isso, à Comissão Constitucional uma grande tarefa nesse domínio, dada a diversidade dos casos concretos so­bre que teve de emitir parecer. Também já este Tribunal se tem pronun­ciado sobre a questão, v. g., nos acórdãos n.ºs 91/84, de 29 de Agosto (Diário da República, 1.ª série, de 6 de Outubro de 1984), 42/85, de 12 de Março (Diário da República, 1.ª série, 6 de Abril de 1985), 130/85, de 23 de Julho (Diário da República, 1.ª série, de 13 de Agosto de 1985), e 82/86, de 18 de Março (Diário da República, 1.ª série, de 2 de Abril de 1986). O Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (Lei n.° 39/80, de 5 de Agosto) é que contém no seu artigo 27.° uma enumeração, aliás bastante extensa, de matérias de interesse específico para a Região. Seja como for, a Assembleia Regional dos Açores só poderia legislar sobre matéria de interesse específico para a Região que não estivesse re­servada à «competência própria dos órgãos de soberania». Caberia a matéria em questão na competência exclusiva da Assembleia da República, designadamente nas alíneas c) e e ) do artigo 167.° da Cons­tituição, como se entendeu na sentença recorrida? A alínea c) referia os «direitos, liberdades e garantias» e a alínea e) as «penas». Este Tribunal, seguindo a orientação ultimamente firmada pela Co­missão Constitucional, entendeu em várias acórdãos, v. g., no n.° 15/84, de 8 de Fevereiro (Diário da República, 2. a série, 11 de Maio de 1984), que «a competência reservada pela Constituição à Assembleia da Repú­blica não abrangia a definição de matéria contravencional». Fê-lo a pro­pósito da elevação, pelo Decreto Regulamentar n.° 40/77, de 16 de Ju­nho, e pelo Decreto-Lei n.° 187/82, de 15 de Maio, dos quantitativos das multas previstas no n.° 1 do artigo 46.° do Código da Estrada, não tendo as normas respectivas sido julgadas inconstitucionais, precisamente por tal matéria não entrar na reserva de competência da Assembleia da República. O citado acórdão foi vivamente criticado por Teresa Pizarro Beleza, que ensina, no seu Direito Penal, 1.° vol ., 2. a ed. revista e actualizada, 1985, n.° 4.3.2.3.1: [?] entenda-se ou não o artigo 167.°, alínea e) (redacção de 1976), como reservando à Assembleia da República o exclusivo do poder legislativo no que respeita à criação de contravenções, uma coisa é certa: a punição legal de qualquer infracção com pena pri­vativa de liberdade, isto é, com pena de prisão, é ? se não por força da alínea e)? reservada à Assembleia da República, por força da alínea c) do mesmo artigo 167.º (redacção de 1976), uma vez que o artigo 27.° expressamente inclui o direito à liberdade, em inequívoco sentido de direito de «não ser privado da liberdade», isto é, de não ser preso, entre os direitos, liberdades e garantias. Isto quer dizer que, mesmo que se admita que o Governo pode legislar sobre contravenções, ele não pode, sob pena de inconsti­tucionalidade orgânica do diploma em causa, impor penas de pri­são ? e quando digo Governo entenda-se também o das regiões autónomas e órgãos das autarquias locais. E mais adiante ( n.° 4.3.2.3.2): [?] parece-me que admitir o poder municipal e regional de legislar sobre penas privativas de liberdade, ainda que «apenas» atra­vés da sua imposição indirecta e «apenas» em âmbito geográfico localizado, a pretexto de se tratar de contravenções e não de cri­mes, é totalmente absurdo e indefensável face à reserva de lei do artigo 167.°, alínea e), da Constituição (texto de 1976). O caso dos autos é, porém, diferente do que foi submetido à aprecia­ção deste Tribunal no citado acórdão n.° 15/84: aí tratava-se da elevação dos quantitativos das multas aplicáveis a uma contravenção (a do n.° 1 do artigo 46.° do Código da Estrada); aqui, do que se trata é da imposi­ção de uma pena de prisão para uma contravenção (a do n.° 1 do ar­tigo 54.° do mesmo Código), anteriormente punida com multa. Ora, seja qual for o mérito da crítica desferida contra a jurisprudên­cia deste Tribunal, representada pelo mencionado acórdão, tem de reconhecer-se que a edição de normas que imponham penas de prisão, por estar em causa a «liberdade» dos cidadãos, era da competência exclu­siva da Assembleia da República, nos termos do artigo 167.°, alínea c), da Constituição, na sua primitiva redacção [como continua a ser, face ao correspondente artigo 168.°, n.° 1, alínea b), da Constituição revista]. Daí que a Assembleia Regional dos Açores, ao decretar a pena de pri­são, no diploma em exame, para a condução de velocípedes com motor sem a respectiva licença, ou seja, uma contravenção punida por lei geral da República (o citado artigo 54.° do Código da Estrada) apenas com multa, tenha invadido a reserva (relativa) de competência da Assembleia da República, com violação do artigo 229.°, n.° 1, alínea a), com refe­rência ao artigo 167.°, alínea c), da lei fundamental. 2.2 ? Violação do artigo 13.° da Constituição. Segundo a sentença recorrida, o regime estabelecido no diploma em causa cria uma desigualdade dos cidadãos perante a lei, «consoante a mesma conduta seja preenchida no território continental ou no território da Região». E, como se sabe, o artigo 13.° da Constituição consagra o princípio da igualdade, ao dispor no seu n.° 1 que «todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei». Mais do que a invocada desigualdade, crê-se, porém, que o que se pretende pôr em dúvida é a existência de «interesse específico» como ra­zão de ser de normas especiais na Região para a condução de velocípedes com motor. O que se invoca no preâmbulo do diploma, ou seja, que «é elevadíssimo na Região o número de acidentes de trânsito envolvidos por velocípedes com motor, a maioria dos quais apresentam característi­cas de pequenos motociclos, com especificações técnicas sempre em evo­lução, tornando, assim, difícil o respeito das normas regulamentares que condicionam a respectiva circulação», tem, na verdade, a ver, no pensa­mento legislativo, com o «interesse específico» da Região. Mas, como resulta do que ficou dito, onde esteja uma matéria reser­vada à «competência própria dos órgãos de soberania», designadamente da Assembleia da República, não há «interesse específico para as regiões» que legitime o poder legislativo das regiões autónomas. Ora, sendo a matéria em causa, como vimos, da exclusiva competên­cia da Assembleia da República, desnecessário se torna verificar se existe aquele interesse específico. 3 ? Pelo exposto, julga-se inconstitucional a norma do artigo 7.°, do Decreto Regional n.° 21/80/A, por violação do artigo 229.°, n.° 1, alí­nea a), com referência ao artigo 167.°, alínea c), da Constituição, na sua versão originária, na medida em que nela se estabelece a pena de prisão para a condução de velocípedes com motor sem habilitação, e, consequen­temente, nega-se provimento ao recurso. Lisboa, 14 de Maio de 1986. ? Mário de Brito ? Magalhães Godi­nho ? Cardoso da Costa ? Mário Afonso ? Messias Bento ? Armando Manuel Marques Guedes.

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Esta decisão foi disponibilizada publicamente pelo Tribunal Constitucional.

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