Decisão

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional: I — Relatório 1 — A. requereu, nos termos do Decreto Regional n.º 24/82/A, de 3 de Setembro, com as alterações introduzidas pelo Decreto Regional n.º 26/83/A, de 4 de Agosto, ao Chefe de Repartição de Finanças do Concelho da Horta, em 31 de Dezembro de 1987, a avaliação do 1.º andar do prédio urbano sito na Rua …, freguesia de Angústias, na Horta, de que é proprietária, e que se encontrava arrendado para habitação a B., há mais de dois anos, pela renda mensal de 700$00, requerendo que o montante da renda fosse elevado para 15.000$00. A Comissão de Avaliação, por parecer de 5 de Setembro de 1988, entendeu, porém, que a renda actualizada não devia exceder o estabelecido no Decreto Regional n.º 24/82/A, e fixou-a em 14.400$00 anuais, ou seja, em 1.200$00 mensais. Inconformada com o resultado a que chegou a Comissão de Avaliação, a senhoria interpôs recurso para o Juiz de Direito do Tribunal Judicial da Comarca da Horta, o qual, no entanto, por despacho de 31 de Outubro de 1988, não admitiu o recurso, considerando-o ilegal, por ser inválida a avaliação que ele visava impugnar. 2 — O despacho judicial mencionado recusou a aplicação ao caso sub iudicio, com fundamento em ilegalidade superveniente, dos artigos 2.º, n.º 2, 6.º e 7.º do Decreto Regional n.º 24/82/A, de 3 de Setembro. A argumentação expendida pelo M. mo Juiz consistiu, essencialmente, no seguinte: a) O Decreto-Lei n.º 445/74, de 12 de Setembro, determinou a suspensão das avaliações fiscais para efeitos de actualização de rendas de prédios destinados a habitação, em todo o Pais; b) Posteriormente, o Decreto-Lei n.º 148/81, de 4 de Junho, manteve essa suspensão (artigo 14.º), excluindo, contudo, do seu âmbito de aplicação o território das Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores (artigo 15.º, n.º 1), prevendo expressamente que os Decretos-Leis n. os 445/74, de 12 de Setembro, e 27/75, de 24 de Janeiro, se considerariam revogados, deixando também de aplicar-se nos territórios das Regiões Autónomas, logo que para estas passasse a vigorar legislação especial (artigo 16.º, n.º 2); c) A nível da Região Autónoma dos Açores, essa legislação especial consubstanciou-se na publicação do Decreto Regional n.º 24/82/A, de 3 de Setembro. Nos termos do artigo 2.º deste diploma, é livre, em princípio, a estipulação de rendas nos novos contratos de arrendamento urbano para habitação (n.º 1), sendo de dois anos o prazo para, após a fixação de qualquer renda, poder ser requerida avaliação fiscal para a alteração da mesma. Por sua vez, o artigo 6.º do mesmo diploma estabelece os coeficientes a ser observados nas avaliações fiscais; d) Entretanto, o Decreto Regional n.º 26/83/A, de 4 de Agosto, veio alterar a redacção dos artigos 3.º e 8.º do Decreto Regional n.º 24/82/A, mas manteve a redacção originária dos preceitos que interessam à resolução do caso sub iudicio; e) Em 20 de Setembro de 1985, foi publicada a Lei n.º 46/85, a qual revogou expressamente apenas a legislação que então vigorava no Continente, designadamente o já referido Decreto-Lei n.º 148/81, sem fazer qualquer referência a legislação regional. De qualquer modo, esta lei, ao regular de forma diferente a actualização das rendas nos contratos de arrendamento para habitação, preteriu e tornou inválidos aqueles diplomas, uma vez que reveste a natureza de lei geral da República, na medida em que tem vocação de aplicação a todo o território nacional e versa sobre matéria que está, desde a revisão constitucional de 1982, reservada à Assembleia da República [cfr. o artigo 168.º, alínea h), da Constituição]; f) Por isso, deve aplicar-se ao caso em apreço o disposto na Lei n.º 46/85, designadamente o que consta dos seus artigos 6.º e 8.º, n. os 2 e 3, que prevêem que os arrendamentos de prédios destinados a habitação existentes à data da entrada em vigor daquela Lei em regime que não seja o de renda condicionada regulado pelo Decreto-Lei n.º 148/81 fiquem sujeitos, a partir do dia 1 de Janeiro do sétimo ano seguinte ao da celebração do contrato, às actualizações anuais com base em coeficientes fixados anualmente pelo Governo, não lhes sendo aplicável a correcção extraordinária prevista nos artigos 11.º e 12.º, por a última alteração da renda ter ocorrido posteriormente a 1 de Janeiro de 1980; g) Assim sendo, quando em 1987 — mais precisamente em 31 de Dezembro —, a senhoria requereu a avaliação extraordinária, esta já não era admissível, pelo que devia ter sido logo recusada. E sendo inválida a avaliação, não pode o recurso dela ser admitido por ilegal. 3 — Desta decisão recorreu o Ministério Público, nos termos do artigo 70.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (versão originária), ou seja, por ela ter recusado a aplicação da norma constante de diploma regional, com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei geral da República. 4 — Nas suas alegações, o Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal, depois de referir que «há que interpretar o requerimento de interposição do recurso como visando apenas pôr em causa a parte da decisão recorrida que recusou a aplicação das normas constantes de um diploma regional (o Decreto Regional n.º 24/82/A), por incompatibilidade com uma posterior lei geral da República (a Lei n.º 46/85)», conclui do seguinte modo: a) É admissível recurso para o Tribunal Constitucional de decisões que recusem a aplicação de normas constantes de diplomas regionais com fundamento em incompatibilidade com lei geral da República posterior; b) A Lei n.º 46/85, de 20 de Setembro, é uma lei geral da República; c) O regime de actualização de rendas constante dos artigos 2.º, n.º 2, 6.º e 7.º do Decreto Regional n.º 24/82/A, de 3 de Setembro, é incompatível com o regime estabelecido pelo artigo 6.º da Lei n.º 46/85; d) Logo, as normas referidas do diploma regional são supervenientemente ilegais. 5 — Corridos os vistos legais, cumpre decidir se os artigos 2.º, n.º 2, 6.º e 7.º do Decreto Regional n.º 24/82/A, de 3 de Setembro, são supervenientemente ilegais, por violação do artigo 6.º da Lei n.º 46/85. Todavia, antes de se entrar na apreciação do mérito da questão, deve ser esclarecido um problema prévio, qual seja o da admissibilidade do presente recurso. Na verdade, podem levantar-se dúvidas sobre a recorribilidade para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que se recusem a aplicar normas de um diploma regional por violação de uma lei geral da República posterior. Poderia, com efeito, argumentar-se em desabono da admissibilidade do presente recurso — como bem salienta o Procurador-Geral Adjunto — do seguinte modo: os artigos 70.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (versão originária), e 280.º, n.º 3, alínea a), da Constituição (na redacção anterior à Lei Constitucional n.º 1/89) apenas contemplam a hipótese de o diploma regional violar uma lei geral da República anterior já vigente na altura em que o diploma regional foi editado, pois só se pode «violar» o que já existe. A situação inversa, isto é, de uma lei geral da República posterior incompatível com diploma regional anterior — que corresponde ao caso sub iudicio —, poderia reconduzir-se ao fenómeno da revogação da lei ordinária anterior pela posterior, que caberia aos tribunais comuns apreciar e decidir definitivamente, sem necessidade de reapreciação da questão pelo Tribunal Constitucional. Dir-se-ia, então, que, nesta hipótese, não haveria, em rigor, «violação» de uma lei geral da República por um diploma legislativo regional e, consequentemente, o presente recurso não caberia na previsão da alínea c) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82 (na sua versão originária), pelo que seria de concluir pela sua inadmissibilidade. Considera, porém, o Tribunal que este entendimento das coisas não seria correcto, fundamentalmente por duas ordens de razões. Em primeiro lugar, a contradição entre um diploma regional e uma lei geral da República posterior não pode ser reconduzida à mera questão da revogação da lei ordinária anterior pela posterior. Uma tal solução apenas seria admissível se as competências legislativas estivessem concentradas nos órgãos do poder central (Assembleia da República e Governo). Mas não é isso que sucede no nosso sistema jurídico-constitucional. Com efeito, o Estado português apresenta-se como um Estado dotado de duas regiões autónomas, cujas assembleias representativas partilham o poder legislativo com os órgãos de soberania. A unidade do Estado português apoia-se, por isso, numa repartição equilibrada de competências de ordem legislativa entre o poder central e o poder regional (cfr., neste sentido, o Parecer da Comissão Constitucional, Vol. 19, pp. 57 e segs.). As regiões autónomas gozam, assim, de um poder legislativo próprio, o qual, todavia, está sujeito a limites estritos definidos pela Constituição, tanto positivos (só pode versar matérias de «interesse específico» das regiões, isto é, «aquelas matérias que lhes respeitem exclusivamente ou que nelas exijam um especial tratamento, por ali assumirem peculiar configuração» — cfr., inter alia, os Acórdãos n. os 42/85, 82/86, 124/86, 333/86 e 91/88, publicados, respectivamente, nos seguintes Diários da República: I Série, de 6 de Abril de 1985; I Série, de 2 de Abril de 1986; II Série, de 6 de Agosto de 1986; I Série, de 19 de Dezembro de 1986; e I Série, de 12 de Maio de 1988), como negativos (não pode violar — para além, naturalmente, da Constituição —, as leis gerais da República, nem versar matérias reservadas à competência própria dos órgãos de soberania) — cfr. os artigos 115.º, n.º 3, e 229.º, n.º 1, alínea a), da Lei Fundamental. Neste contexto, compreende-se que toda e qualquer violação destes limites por parte da legislação regional — que origine a ilegalidade dos respectivos diplomas legislativos regionais (trate-se de ilegalidade stricto sensu ou de inconstitucionalidade) — caiba na esfera da competência do Tribunal Constitucional, ainda que, como acontece no caso sub iudicio, a ilegalidade seja tão-só de natureza superveniente, traduzida no facto de a matéria disciplinada por um diploma legislativo regional ter passado a ser regulada, em termos substancialmente diferentes, por uma lei da República posterior. Compete, deste modo, ao juiz constitucional fiscalizar o respeito do equilíbrio das competências legislativas entre os órgãos legislativos centrais e os órgãos legislativos regionais criados pela Constituição (cfr. Franck Moderne, «Les Régions Autonomes dans la Jurisprudence Constitutionnelle du Portugal», in La Justice Constitutionnelle au Portugal, Paris, Economica, 1989, p. 354). Em segundo lugar, a figura da «ilegalidade superveniente» está expres­samente prevista, ao lado da «inconstitucionalidade superveniente», no artigo 282.º, n.º 2, da nossa Lei Fundamental. Dispõe, com efeito, este normativo: Tratando-se, porém, de inconstitucionalidade ou de ilegalidade por infracção de norma constitucional ou legal posterior, a declaração só produz efeitos desde a entrada em vigor desta última (itálico nosso). É certo que este preceito constitucional refere-se directamente à fiscalização abstracta, mas nada obsta a que se veja nele a condensação de um princípio geral de «ilegalidade superveniente», aplicável também no domínio da fiscalização concreta. A conclusão a extrair de tudo o que vem de ser exposto — na esteira, aliás, do que é defendido nas alegações do Procurador-Geral Adjunto — não pode deixar de ser a de que é admissível recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que recusem a aplicação de norma constante de diploma regional com fundamento na sua «ilegalidade super­veniente», não apenas por efeitos de alteração das leis gerais da República (cfr., neste sentido, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.º vol., 2.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1985, p. 542), mas também em consequência do aparecimento de uma lei geral da República a regular, com soluções diferentes, matéria até então disciplinada por esse diploma regional. II — Fundamentos 6 — Na resolução do caso sub iudicio, vamos adoptar a seguinte regra metodológica: num primeiro momento, averiguar-se-á se a Lei n.º 46/85, de 20 de Setembro, consubstancia ou não uma «lei geral da República»; num segundo momento — pressupondo que se chega a uma resposta positiva quanto à questão anterior —, vamos indagar se e em que medida o regime jurídico introduzido pela Lei n.º 46/85 é incompatível com o esta­tuído pelas normas regionais desaplicadas. 7 — Comecemos, então, por esclarecer se a Lei n.º 46/85, de 20 de Setembro, é ou não uma «lei geral da República». Refira-se, desde já, que aquela lei não indica expressamente o seu âmbito territorial de aplicação. Assim sendo, só através de uma análise do sentido e alcance do conceito de lei geral da República é que aquela questão pode ser deslindada. O artigo 115.º, n.º 4, da Constituição define do seguinte modo as leis gerais da República: «São leis gerais da República as leis e os decretos-leis cuja razão de ser envolva a sua aplicação sem reservas a todo o território nacional». Este preceito não fornece uma noção acabada da lei geral da República, mas somente «elementos indicadores» que auxiliam o intérprete na densificação material do conceito. Várias têm sido as formulações, tanto doutrinárias, como jurispruden­ciais, que visam o núcleo essencial do conceito de «lei geral da República», algumas delas anteriores àquela definição constitucional. Assim, Gomes Canotilho/Vital Moreira consideram lei geral da República aquela «que contém uma disciplina material, mais ou menos desenvolvida, de interesses globais extensivos a todo o território nacional» (cfr. Constituição da República Anotada, 2.º vol., 2.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1985, p. 61). Jorge Miranda escreve, a propósito, que «quando os órgãos de soberania legislam, legislam para todo o território nacional — fazem leis gerais da República, na expressão do artigo 229.º — e isso independentemente da matéria de que tratam. Para que assim não seja, terão os diplomas em causa de o dizer expressamente, circunscrevendo o seu âmbito ter­ritorial de aplicação» (cfr. «A Autonomia Legislativa Regional e o Interesse Específico das Regiões Autónomas», in Estudos sobre a Constituição, Vol. i , Lisboa, Petrony, 1977, p. 313). Em sentido bastante próximo, F. Amâncio Ferreira considera leis gerais da República «as aplicáveis à generalidade do território nacional, que, explícita ou implicitamente, não excluam as regiões do seu âmbito de aplicação» (cfr. As Regiões Autónomas na Constituição Portuguesa, Coimbra, Almedina, 1980, p. 93). Por sua vez, o Tribunal Constitucional tem referido, em jurisprudência uniforme e constante, que as leis que versem matérias com relevo imediato para a generalidade dos cidadãos são da competência dos órgãos de soberania (Assembleia da República ou Governo), por exigências decorrentes do princípio da unidade do Estado e dos laços de solidariedade que devem unir os portugueses (cfr., inter alia, os Acórdãos n. os 91/84, 82/86, 326/86 e 267/87, publicados no Diário da República, I Série, de 6 de Outubro de 1984, 2 de Abril de 1986, 18 de Dezembro de 1986 e 31 de Agosto de 1987, respectivamente), assumindo, por isso, o carácter de «leis gerais da República». Todos estes critérios avançados pela doutrina e pela jurisprudência constituem preciosos instrumentos para a individualização das leis e dos decretos-leis que assumem a dignidade de «lei geral da República». Não dispensam, por isso, uma análise caso a caso, pois só através da identificação nas leis e nos decretos-leis das normas e princípios portadores de eficácia normativa para os cidadãos do todo nacional é que se torna possível saber se, em concreto, uma determinada lei ou um decreto-lei específico revestem a natureza de lei geral da República. Vai, neste sentido, também a opinião de Barbosa de Melo/Cardoso da Costa/Vieira de Andrade (cfr. Estudo e Projecto de Revisão da Constituição, Coimbra, Coimbra Editora, 1981, pp. 265 e 266), que, depois de restringirem as leis gerais da República àquelas «que fluem da própria ideia da unidade do Estado», defendem que a sua individualização terá de ser encontrada caso a caso, através da «procura nas leis da República daqueles princípios e normas fundamentais cuja observância é sinal e garantia do carácter unitário do Estado». É esta também a senda que nos propomos trilhar, com vista a demonstrar o carácter de «lei geral da República» da Lei n.º 46/85. 8 — Como tópicos fundamentadores da natureza de «lei geral da República» da Lei n.º 46/85, apontam-se resumidamente os seguintes: a) A referida Lei não contém qualquer disposição indicativa da limitação do seu âmbito de eficácia ao território do continente. Este facto já poderia indiciar a conclusão de que aquele diploma se aplica a todo o território nacional. Conclusão esta que se imporia tanto mais que, quer o Decreto-Lei n.º 148/81, de 4 de Junho, quer o Decreto-Lei n.º 294/82, de 27 de Julho — diplomas que a Lei n.º 46/85 expressamente revogou, no seu artigo 51.º, n.º 1 —, limitavam expressamente o seu âmbito de aplicação ao território continental, coisa que não acontece com aquela Lei; b) Uma análise cuidada dos diplomas complementares da Lei n.º 46/85 aponta inequivocamente para o seu carácter de «lei geral da República». Assim, as Portarias que fixam os factores de correcção extraordinária das rendas, nos termos do artigo 11.º da Lei n.º 46/85, contêm indicadores que se aplicam a todo o território nacional (cfr. a Portaria n.º 648-A/86, de 31 de Outubro, e a Portaria n.º 965-B/89, de 31 de Outubro). Por outro lado, o Decreto-Lei n.º 13/86, de 23 de Janeiro — que regulamenta o regime de renda condicionada —, é bem claro na definição da natureza de «lei geral da República» da Lei n.º 46/85. Expressiva é a seguinte passagem do preâmbulo daquele diploma legislativo: «Com a publicação da Lei n.º 46/85, de 20 de Setembro, abre-se um novo período no enquadramento jurídico e económico do regime de arrendamento habitacional, o que, espera-se, permitirá a prazo o estabelecimento de um mercado de arrendamento privado com papel relevante na situação habitacional do Pais» (itálico nosso); c) No mesmo sentido, pode invocar-se a ideia segundo a qual a Lei n.º 46/85 visou disciplinar o regime de rendas do arrendamento urbano para habitação, de uma forma global, unitária e sistemática, colmatando nesta matéria uma lacuna há muito sentida neste domínio. Os aspectos essenciais do dito regime jurídico introduzido por aquela Lei são os seguintes: — definição dos três tipos de renda susceptíveis de aplicação no domínio do arrendamento para habitação: o da renda livre (artigo 2.º); o da renda condicionada (artigo 3.º); e o da renda apoiada (artigo 9.º); — consagração de um sistema de actualização anual da renda (artigo 6.º, n.º 1), qualquer que seja o regime aplicável, através dos coeficientes fixados anualmente pelo Governo (artigo 6.º, n.º 2); — previsão de um sistema de correcção extraordinária das rendas fixadas antes de 1 de Janeiro de 1980. d) A Lei n.º 46/85 introduziu, no seu Capítulo IV (artigos 22.º e seguintes), uma inovação importante no domínio do arrendamento para habitação, que consiste na atribuição de um subsídio de renda aos inquilinos com baixos rendimentos, matéria esta que, pela sua natureza, tem necessariamente uma vocação de aplicação a todo o território nacional; e) Aquela Lei contém, no Capítulo VII, várias disposições de natureza tributária, designadamente isenções fiscais, matéria que, integrando-se na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República [cfr. o artigo 168.º, n.º 1, alínea i), da Cons­tituição], não pode deixar de ter uma eficácia de âmbito nacional; f) A Lei n.º 46/85 inclui preceitos que devem ser interpretados em conjugação com algumas disposições do Código Civil. É o que acontece com as normas do Capítulo III sobre «obras de con­servação e beneficiação» (artigos 16.º e seguintes), que devem ser harmonizadas com os artigos 1043.º e 1092.º do Código Civil; g) No Capítulo VIII (artigos 40.º e seguintes), a referida Lei altera alguns preceitos do Código Civil, o qual é incontestavelmente uma «lei geral da República», nos termos do artigo 115.º, n.º 4, da Constituição, pelo que aquelas disposições da Lei n.º 46/85 têm necessariamente um âmbito de aplicação correspondente ao território nacional; h) Nas disposições finais e transitórias (artigos 44.º e seguintes), a mesma Lei criou tipos de crimes (crime de especulação — artigo 47.º; e de falsas declarações — artigo 48.º) —, matéria que cabe no âmbito da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República [artigo 168.º, n.º 1, alínea c), da Constituição]; i) Acresce que a Lei n.º 46/85, ao disciplinar um aspecto relevante do regime geral do arrendamento urbano para habitação, toca uma matéria de grande significado político, social e económico, que tem a ver com os interesses básicos de todos os cidadãos, pelo que o seu âmbito de aplicação deve coincidir necessariamente com o todo nacional; j) Refira-se ainda que a Constituição consagra, no artigo 65.º, o direito a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar, como um direito fundamental do cidadão. Para assegurar a concretização deste direito, o mesmo artigo incumbe o Estado no desempenho de determinadas tarefas, entre as quais as de adoptar «uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar […]» (cfr. artigo 65.º, n.º 3). Esta imposição, directamente dirigida ao Estado, não pode deixar de vincular, em primeira linha, a Assembleia da República; l) Finalmente, com a Lei Constitucional n.º 1/82 a definição do «regime geral do arrendamento urbano» passou a constar das matérias elencadas na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República [cfr. artigo 168.º, n.º 1, alínea h), da Constituição], pelo que, também por esta razão, a Lei n.º 46/85 constitui «uma lei geral da República» ou uma lei nacional. Tudo o que vem de ser exposto permite-nos concluir que a Lei n.º 46/85, de 20 de Setembro, contém matéria de inegável dimensão nacional, pelo que deve ser configurada como uma «lei geral da República». 9 — Aclarada a primeira questão, é altura de passarmos à segunda, a qual consiste — repetimos — em saber se e em que medida os artigos 2.º, n.º 2, 6.º e 7.º do Decreto Regional n.º 24/82/A, de 3 de Setembro, contêm uma disciplina incompatível com a Lei n.º 46/85, enquanto «lei geral da República». O Decreto Regional n.º 24/82/A, depois de referir no seu preâmbulo que «este projecto não ofende a Constituição nem qualquer lei geral da República, além de dispor sobre a matéria de interesse específico regional [Estatuto Político-Administrativo da Região, artigo 27.º, alínea z) ], na medida em que a problemática da habitação nas pequenas comunidades insulares se faz sentir de uma maneira diferente da que existe em território continental» prescreve no artigo 2.º o seguinte: 1 — Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 5.º, é livre a estipulação de rendas nos novos contratos de arrendamento. 2 — É de 2 anos o prazo para, após a fixação de qualquer renda, requerer avaliação fiscal para alteração da mesma. Por sua vez, o artigo 6.º determina o seguinte: 1 — Nos contratos de arrendamento que tiverem a sua renda fixada, em regime legal de liberdade contratual, após 12 de Setembro de 1974, a primeira avaliação não poderá fixar renda superior às resultantes da aplicação à vigente dos seguintes coeficientes, em relação ao ano a que disser respeito aquela fixação: Percentagens 1974 .......................................................................................... 50 1975 e 1976 ........................................................................... 40 1977 e 1978 ........................................................................... 30 1979 e 1980 ........................................................................... 20 1981 e 1982 ........................................................................... 10 2 — A primeira avaliação relativa aos contratos com rendas fixa­das antes da data referida no número anterior não poderá, em prin­cípio, fixar renda superior às resultantes da aplicação à vigente dos seguintes coeficientes, em relação ao período de anos a que disser respeito aquela fixação: Percentagens Até 1960 ................................................................................ ...................................................................................................... 200 De 1961 a 1965 ................................................................. ...................................................................................................... 150 De 1966 a 1270 ................................................................. ...................................................................................................... 100 De 1971 a 12 de Setembro de 1974 ........................ 75 3 — Poderão, no entanto, ser ultrapassados os coeficientes referidos no número anterior sempre que o montante da renda a fixar não atinja os seguintes valores: Até 1960 .................................................................................. .................................................................................. 1.000$00 De 1961 a 1965 ................................................................... .................................................................................. 1.500$00 De 1966 a 1970 ................................................................... .................................................................................. 2.000$00 De 1971 a 12 de Setembro de 1974 ........................ .................................................................................. 2.250$00 Finalmente, o artigo 7.º dispõe que: Nas futuras avaliações dos prédios cujas rendas porventura tenham sido revistas entre 27 de Junho de 1981 e a data de entrada em vigor deste decreto regional serão tidos em conta os critérios estabelecidos neste diploma, desde que seja necessário torná-las compatíveis com os mesmos. Nos presentes autos, apenas é questionada a (i)legalidade superveniente dos artigos transcritos do Decreto Regional n.º 24/82/A, devido ao facto de conterem disciplina incompatível com o artigo 6.º da Lei n.º 46/85. Não interessa, por isso, averiguar, in casu, se aquele Decreto Regional versa ou não matéria de interesse específico para a Região Autónoma dos Açores ou se incide ou não sobre matéria reservada à competência dos órgãos de sobe­rania. Não tendo sido suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade daquelas normas do Decreto Regional n.º 24/82/A, mas tão-só um problema de (i)legalidade, interessa unicamente aferir a compatibilidade do seu conteúdo com o estatuído pelo artigo 6.º da Lei n.º 46/85. Vejamos então. 10 — O artigo 6.º da Lei n.º 46/85 dispõe o seguinte: 1 — As rendas, qualquer que seja o regime aplicável, ficam sujeitas a actualizações anuais, podendo a primeira ser exigida pelo senhorio 1 ano após a data do início da vigência do contrato e as seguintes, sucessivamente, 1 ano após a actualização anterior. 2 — Relativamente a cada um dos regimes de renda, as actualizações têm por base coeficientes, iguais ou diferentes, a fixar anualmente pelo Governo, durante o mês de Outubro do ano anterior, ouvido o Conselho de Concertação Social, que deve pronunciar-se no prazo máximo de 30 dias. 3 — Os coeficientes a que se refere o número anterior são fixados entre três quartos e a totalidade do índice de preços ao consumidor sem habitação, correspondentes aos últimos 12 meses para os quais existam valores disponíveis à data de 31 de Agosto, determinados pelo Instituto Nacional de Estatística. 4 — Os coeficientes estabelecidos nos termos dos n. os 2 e 3 constituem os limites máximos do crescimento anual das rendas. 5 — A não actualização das rendas não pode dar lugar a posterior recuperação dos aumentos de renda não feitos, mas o coeficiente estabelecido de acordo com os n. os 2 e 3, ou outro inferior, pode ser aplicado no cálculo das rendas em anos posteriores desde que não tenham passado mais de 2 anos sobre a data em que teria sido possível a sua aplicação. Este dispositivo legal estabelece o princípio da actualização anual das rendas, fixa os respectivos critérios e determina as regras processuais a que deve obedecer a sua determinação. A disciplina constante do artigo 6.º da Lei n.º 46/85, nesta sua tríplice dimensão, constitui parte integrante do «regime geral» do arrendamento urbano para habitação. Com efeito, na medida em que versa sobre a determinação do montante da renda e suas alterações, toca um elemento essencial do contrato de arrendamento — precisamente, «a retribuição devida ao locador […], elemento verdadeiramente substantivo […] e dos mais significativos do respectivo regime jurídico» (cfr. o Acórdão n.º 77/88, publicado no Diário da República, I Série, de 28 de Abril de 1988). Sendo assim, não oferece dúvidas que a disciplina contida no artigo 6.º da Lei n.º 46/85, inscrevendo-se «no regime geral do arrendamento […] urbano» [e assim na reserva de competência da Assembleia da República: artigo 168.º, n.º 1, alínea h) ] se aplica a todo o território nacional como «lei geral da República» — o que não obsta a que possa haver regimes especiais de arrendamento, editados pelos órgãos legislativos regionais. Questão é que tais regimes especiais se possam justificar à luz do interesse específico regional. 11 — Chegados a este ponto, fácil é constatar a incompatibilidade entre o estatuído nos artigos 2.º, n.º 2, 6.º e 7.º do Decreto Regional n.º 24/82/A, de 3 de Setembro, e o artigo 6.º da Lei n.º 46/85, de 20 de Setembro. De facto, o regime de actualização das rendas para habitação estabelecido naqueles normativos é substancialmente diferente. Em primeiro lugar, nos termos do artigo 2.º, n.º 2, do Decreto Regional mencionado, a alteração da renda só pode ser exigida pelo senhorio decorrido o prazo de dois anos após a sua fixação, ao passo que, de acordo com o artigo 6.º da Lei n.º 46/85, a actualização daquela tem uma periodicidade anual. Em segundo lugar, o método de actualização da renda fixado no Decreto Regional n.º 24/82/A é o da avaliação fiscal, realizada caso a caso, e cujo resultado se apresenta aleatório, enquanto no artigo 6.º da Lei n.º 46/85 é adoptado um outro método — porventura mais justo e conducente a resultados previsíveis —, que é o dos coeficientes fixados anualmente pelo Governo, durante o mês de Outubro do ano anterior, com referência à taxa de inflação (cfr. n. os 2 e 3 do artigo 6.º), coeficientes estes que são de actualização e de correcção extraordinária. 12 — O exposto anteriormente impele-nos a concluir que o regime de actualização das rendas constante dos artigos 2.º, n.º 2, 6.º e 7.º do Decreto Regional n.º 24/82/A, de 3 de Setembro, é incompatível com o regime estabelecido pelo artigo 6.º da Lei n.º 46/85, de 20 de Setembro. Assim sendo, aquelas disposições do Decreto Regional n.º 24/82/A são supervenientemente ilegais. III — Decisão Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a decisão recorrida. Lisboa, 19 de Abril de 1990. Fernando Alves Correia Mário de Brito Luís Nunes de Almeida Messias Bento Bravo Serra José de Sousa e Brito José Manuel Cardoso da Costa.

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Esta decisão foi disponibilizada publicamente pelo Tribunal Constitucional.

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