Tribunal Constitucional
TC, acórdão n.º 748/14, 11-Nov.-2014 (José Cunha Barbosa), 132/14
Data: 11 Nov. 2014
Acórdão n.º: 748/14
Processo n.º: 132/14
Fonte: tribunalconstitucional
Relator: José Cunha Barbosa
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Citação: TC, acórdão n.º 748/14, 11-Nov.-2014 (José Cunha Barbosa), 132/14
- Jurisprudência
- PT
- TC
- 132/14
Aa
-
A
Decisão
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional I. Relatório 1. O Ministério da Administração Interna recorre para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea a) , do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS), de 5 de dezembro de 2013, que recusou a aplicação da norma constante do artigo 8.º, n.º 1, alínea d) , do Decreto-Lei n.º 35/2004, de 21 de fevereiro, com fundamento em violação do artigo 30.º, n.º 4, da Constituição. 2. O Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco decidiu, por sentença datada de 31 de maio de 2012, julgar improcedente a ação administrativa especial intentada pelo ora recorrido contra o Ministério da Administração Interna, mantendo na ordem jurídica o ato de indeferimento do pedido de renovação de cartão profissional para o exercício de funções de vigilante privado que aquele havia deduzido. Inconformado, o ora recorrido interpôs recurso para o TCAS, que, por acórdão de 5 de dezembro de 2014, lhe conferiu provimento, louvando-se, para tanto, nos seguintes fundamentos: «(…) Erro de julgamento de Direito, com fundamento em inconstitucionalidade da alínea d), do art.º 8.º do DL n.º 35/2004, de 21/02, alterado pelo DL n.º 198/2005, de 10/11, pela Lei n.º 38/2008, de 08/08 e pelo DL n.º 135/2010, de 27/12, por violação do n.º 4, do art.º 30º, da Constituição e dos princípios da culpa, da necessidade da pena, da legalidade, da jurisdicionalidade da aplicação do direito penal, da humanidade e da igualdade. Nos termos do presente recurso veio o Recorrente a juízo impugnar a sentença que julgou improcedente o pedido de declaração de nulidade ou de anulação do ato impugnado, relativo ao indeferimento do pedido de renovação do cartão profissional de segurança privado. Insurge-se o Recorrente contra a interpretação adotada na sentença recorrida, que se traduz na aplicação automática do disposto na alínea d), do n.º 1, do art.º 8.º, conjugado com os n.ºs 1 e 3, do art.º 10.º, ambos do DL n.º 35/2004, de 21/02, igualmente seguida pela Administração, no sentido de que, em face do teor do registo criminal do requerente, não é necessário verificar se o mesmo reúne as demais condições previstas para o deferimento do pedido, por a condenação penal, só por si, excluir a possibilidade de concessão ou de renovação do cartão profissional, por a condenação pela prática de crime determinar automaticamente o indeferimento do pedido de renovação do cartão profissional de vigilante. É contra este julgamento que se insurge o Recorrente, assacando à sentença recorrida o erro de julgamento de direito, em violação do disposto nos art.ºs 30.º, n.º 1, 18.º e 204.º, todos da Constituição. Vejamos. (…) Compulsando a matéria de facto assente extrai-se que tendo sido apresentado pedido de renovação do cartão profissional para o exercício de funções de vigilante privado, veio o mesmo a ser indeferido, com base no fundamento único da inscrição no registo criminal do requerente da condenação na pena de vinte meses de prisão, suspensa pelo mesmo período, pela prática do crime de violência doméstica, por sentença que transitou em julgado em 02/04/2009. Como resulta da fundamentação que subjaz ao ato impugnado, o pedido de renovação do cartão profissional foi indeferido tendo por base, exclusivamente, o facto de o seu titular ter sido condenado pela prática de um crime, surgindo assim, como efeito automático de tal condenação penal. (…) O Recorrente foi condenado, por sentença transitada em julgado, em 02/04/2009, pela prática de um crime de maus tratos do cônjuge ou análogo, previsto e punido pela al. a), do n.º 1, do art.º 152.º do Código Penal, cuja moldura penal vai de um a cinco anos de prisão, na pena de 20 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período. Por decisão judicial datada de 09/06/2011, foi declarada extinta a referida pena nos termos do n.º 1, do art.º 57.º do Código Penal e determinada a remessa de boletins ao registo criminal, para efeitos do disposto na alínea a), do n.º 1, do art.º 5.º da Lei n.º 57/98, de 18/08, conforme fls. 141 e 142 dos autos. Pelo que, como se assinala no parecer do Ministério Público, à data da prolação do ato impugnado, em 21/02/2011, a pena de prisão em questão já se encontrava extinta, não obstante à data de emissão do registo criminal, em 2010, ainda não constasse a extinção da pena. O que está em causa é saber se o indeferimento automático do pedido de renovação do cartão profissional para o exercício profissional de vigilante por mero efeito da aplicação de uma pena resultante de condenação judicial, viola o disposto no n.º 4, do art.º 30.º da Constituição e, consequentemente, se incorre a sentença recorrida em erro de julgamento ao julgar a ação improcedente. Questão idêntica já foi submetida ao Tribunal Constitucional, conforme refere o Recorrente na sua alegação de recurso, pelo que, seguir-se-á a sua doutrina quanto à interpretação a dar ao disposto no n.º 4 do art.º 30.º da Constituição, num caso de revogação da licença de um guarda-noturno, baseada em condenação penal pela prática de crime doloso. (…) Consideramos que vale para o caso trazido a juízo a doutrina do citado Acórdão do Tribunal Constitucional, já que também neste caso o requerente viu automaticamente indeferido o seu pedido de renovação do cartão profissional de vigilante, por mero efeito da condenação penal (pela prática de um crime de maus tratos do cônjuge ou análogo, previsto e punido pelo art.º 152.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena de vinte meses de prisão, suspensa na sua execução, cuja extinção já havia ocorrido à data da prática do ato administrativo impugnado). O ato impugnado, sem apreciar o pedido apresentado à luz dos demais requisitos previstos, indeferiu a pretensão requerida unicamente baseada no averbamento da prática de um crime, o que constitui uma violação do disposto no n.º 4, do art.º 30.º da Constituição. Assim, a norma da alínea b), do art.º 8.º do DL n.º 35/2004, de 21/02, conjugada com o disposto no n.º 3 do art.º 10.º, quando interpretada no sentido de que a condenação pela prática de crime determina automaticamente a falta desse requisito e, em consequência, o indeferimento do pedido de renovação do cartão profissional de segurança privado, consagra uma solução proibida pelo n.º 4, do art.º 30.º da Constituição, em conjugação com o princípio da proporcionalidade, pelo que, enferma de inconstitucionalidade. Pelo exposto, acolhendo a doutrina do Tribunal Constitucional, será de conceder provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida por erro de julgamento de direito, recusando-se a aplicação do disposto na alínea d), do art.º 8.º do DL n.º 35/2004, de 21/02, por inconstitucionalidade, decorrente da violação do n.º 4 do art. 30.º da Constituição e, em consequência, revoga-se o ato impugnado, de indeferimento do pedido de renovação do cartão profissional de segurança privado. (…)» 3. O recurso foi admitido pelo tribunal recorrido. Notificado para apresentar alegações, nos termos do artigo 79.º da LTC, formulou o recorrente as seguintes conclusões: «(…) 1. O tribunal a quo decidiu recusar a aplicação da al. d), do n.º 1, do artigo 8.º do DL n.º 35/2004, de 21/11, com fundamento na sua inconstitucionalidade, por violação do n.º 4, do artigo 30.º da CRP, conjugado com o princípio da proporcionalidade. 2. Em consequência de tal desaplicação, o tribunal a quo revogou o ato administrativo que indeferiu o pedido de renovação do cartão profissional de segurança privado. 3. Nos termos da al. d), do n.º 1, do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 35/2004, de 21 de fevereiro , «Os administradores ou gerentes de sociedades que exerçam a atividade de segurança privada devem preencher permanente e cumulativamente os seguintes requisitos: (...) Não ter sido condenado, por sentença transitada em julgado, pela prática de crime doloso contra a vida, a integridade física ou a reserva da vida privada, contra o património, de falsificação, contra a segurança das telecomunicações, contra a ordem e a tranquilidade públicas, de resistência ou desobediência à autoridade pública, de detenção ilegal de armas ou por qualquer outro crime doloso punível com pena de prisão superior a 3 anos, sem prejuízo de reabilitação judicial (…)». 4. Por sua vez, o n.º 3 do artigo 10.º do mesmo diploma preceitua que «A renovação do cartão profissional implica (...), a comprovação do requisito previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 8.º » 5. Contrariamente ao entendimento expendido na decisão recorrida, a prática de um qualquer crime não impede a renovação do cartão profissional do” pessoal de vigilância”. Para que tal aconteça, o crime pelo qual o profissional tenha sido condenado terá de ser um crime de gravidade relevante - crime doloso contra a vida, a integridade física ou a reserva da vida privada, contra o património, de falsificação, contra a segurança das telecomunicações, contra a ordem e a tranquilidade públicas, de resistência ou desobediência à autoridade pública, de detenção ilegal de armas ou por qualquer outro crime doloso punível com pena de prisão superior a 3 anos. 6. Ainda que o crime pelo qual determinado profissional seja condenado pertença ao catálogo de crimes referidos na norma em causa, esta prevê, na sua parte final, uma cláusula de salvaguarda – “ sem prejuízo da reabilitação judicial”. 7. O tribunal a quo fundamenta a sua decisão, em larga medida, por remissão para o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 25/2011, de 12/01, processo n.º 120/10, publicado no DR, 2ª Série, n.º 38, de 23/02/2011, do qual transcreve diversos excertos. 8. Acontece que, contrariamente à norma desaplicada pelo tribunal a quo, a norma que estava em causa no referido aresto do Tribunal Constitucional previa a revogação de licença de guarda-noturno, caso o profissional fosse condenado por um qualquer crime doloso, sendo que a norma, ali em apreço, previa também a impossibilidade de aceder à atividade de forma perpétua . 9. Diversamente daquele caso (estava em causa um crime de dano simples), na situação em concreto dos presentes autos - em que ao profissional não foi renovado o seu cartão de segurança privado, em virtude de ter sido condenado pela prática de um crime de maus tratos do cônjuge ou análogo, p.p. pelo artigo 152.º do Código Penal - existe uma conexão relevante entre o crime praticado e a atividade sob licenciamento . 10. O crime de maus tratos do cônjuge (atualmente denominado violência doméstica) é um crime contra a integridade física, que assume gravidade relevante, sendo inclusive alvo de particular atenção por parte da política criminal. 11. É, pois, perfeitamente razoável que o legislador pretenda que quem atente contra a integridade física de outrem de forma gravosa, como é exemplo paradoxal a violência doméstica, não possa exercer funções de segurança. 12. Também diversamente do caso tratado no Acórdão do Tribunal Constitucional que serviu de sustento à fundamentação da decisão ora recorrida, a norma da al. d) do artigo 8.º do D.L. n.º 35/2004, de 21/02, prevê, conforme supra se demonstrou, a possibilidade da anterior condenação não ser obstáculo à atividade sob licenciamento, caso se verifique reabilitação judicial. 13. A norma legal desaplicada apenas violaria o n.º 4, do artigo 30.º da CRP, conjugado com o princípio da proporcionalidade, ínsito no n.º 2 do artigo 18.º da CRP, caso a “automaticidade” operasse sem que o legislador ordinário tivesse ponderado a gravidade do crime relativamente ao exercício da profissão de “segurança privado” e sem que acautelasse a hipótese de tal efeito cessar por reabilitação judicial. 14. O artigo 30.º, n.º 4 da CRP não impede que o legislador ordinário interdite o acesso a determinada profissão a alguém que tenha sido condenado pela prática de determinado crime, desde que a anterior prática desse crime releve negativamente no exercício da atividade a que se pretende aceder e desde que a interdição não seja indefinida no tempo. 15. Assim sendo, o legislador ordinário, ao ponderar quais as situações que prejudicam a verificação de idoneidade de um pretendente ao acesso da profissão de segurança privada, entendeu que a condenação pela prática de crime com gravidade relevante condiciona negativamente tal verificação. 16. O legislador cuidou de incluir na norma em apreço a denominada “cláusula de salvaguarda”, uma vez que ali se preceitua que a reabilitação judicial afasta o condicionamento negativo de acesso à atividade de segurança privado por ter existido, por parte do pretendente, condenação pela prática de determinado tipo de crime. 17. A norma legal em causa não viola o princípio da proporcionalidade, uma vez que visa a necessidade de prever que a atividade de segurança privada é exercida por quem tenha idoneidade para o efeito, impedindo, de forma adequada que alguém condenado pela prática de crime com gravidade acentuada venha a exercer uma função socialmente sensível, como é a função de segurança, sem prejuízo de salvaguardar as situações de reabilitação judicial, equilibrando o interesse prosseguido com o sacrifício imposto. 18. Tudo visto, a norma legal constante da al. d), do n.º 1, do artigo 8.º do DL n.º 35/2004, de 21/11 não infringe o disposto no artigo 30.º, n.º 4 da CRP e não viola o princípio da proporcionalidade consignado na CRP, pelo que deve a mesma ser julgada não inconstitucional. (…)» Tudo visto, cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentação 4. O objeto do presente recurso é integrado pela norma constante do artigo 8.º, n.º 1, alínea d) , conjugada com o n.º 3 do artigo 10.º, do Decreto-Lei n.º 35/2004, de 21 de fevereiro, na parte em que nela se prevê que a condenação pela prática dos crimes aí elencados determina automaticamente o indeferimento do pedido de renovação do cartão profissional de segurança privado. A norma em causa tem a seguinte redação: «(...) Artigo 8.º Requisitos e incompatibilidades para o exercício da atividade de segurança privado 1. Os administradores ou gerentes de sociedades que exerçam a atividade de segurança privado devem preencher permanente e cumulativamente os seguintes requisitos: (...) d) Não ter sido condenado por sentença transitada em julgado pela prática de crime doloso contra a vida, a integridade física ou a reserva da vida privada, contra o património, de falsificação, contra a segurança das telecomunicações, contra a ordem e tranquilidade públicas, de resistência ou desobediência à autoridade pública, de detenção ilegal de armas, ou por qualquer outro crime doloso punível com pena de prisão superior a três anos, sem prejuízo de reabilitação judicial; (...) 2. O responsável pelos serviços de autoproteção e o pessoal de vigilância devem preencher permanente e cumulativamente os requisitos previstos nas alíneas a) a d), f) e g), do número anterior. (...). Artigo 10.º Cartão profissional 1. – Para o exercício das suas funções, o pessoal de vigilância deve ser titular de cartão profissional emitido pela Scretaria-Geral do Ministério da Administração Interna, válido por cinco anos e suscetível de renovação por iguais períodos de tempo. (…) 3. – A renovação do cartão profissional implica (…) a comprovação do requisito previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 8.º. (…)». Com pertinência para os presentes autos, esclarece o n.º 5 do artigo 8.º do mesmo diploma legal (o itálico é nosso): «(...) 5. São requisitos específicos de admissão e permanência na profissão do pessoal de vigilância: a) Possuir a robustez física e o perfil psicológico necessários para o exercício das suas funções , comprovados por ficha de aptidão, acompanhada de exame psicológico obrigatório, emitida por médico do Trabalho, nos termos da legislação em vigor, ou comprovados por ficha de aptidão ou exame equivalente efetuado noutro Estado-membro da União Europeia. b) Ter frequentado, com aproveitamento, cursos de formação nos termos estabelecidos no artigo 9.º, ou cursos idênticos ministrados noutro Estado-membro da União Europeia. (...)» A aplicação da norma em crise foi rejeitada, pelo tribunal recorrido, com fundamento no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição, preceito que contém uma estatuição com enorme respaldo na jurisprudência deste Tribunal – o princípio da proibição de penas automáticas. Ora, tal proibição, como é consabido, pretende impedir que haja um efeito automático de condenação penal nos direitos civis, profissionais e políticos do arguido. A sua justificação é simultaneamente a de obviar ao efeito estigmatizante e criminógeno das penas e de impedir a violação dos princípios da culpa e da proporcionalidade, que impõem uma ponderação, em concreto, da adequação do efeito em causa à gravidade do ilícito, afastando a possibilidade de penas fixas (cfr. o acórdão n.º 461/2000, disponível em www.tribunalconstitucional.pt ). Como se lê, em sentido semelhante, no acórdão n.º 284/89 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt ): «(...) Com tal preceito pretendeu-se proibir que, em resultado de quaisquer condenações penais, se produzissem automaticamente, pura e simplesmente, ope legis , efeitos que envolvessem a perda de direitos civis, profissionais e políticos e pretendeu-se que assim fosse porque, em qualquer caso, essa produção de efeitos, meramente mecanicista, não atenderia afinal aos princípios da culpa, da necessidade e da jurisdicionalidade. (...)» A aplicação que deste princípio vem fazendo a jurisprudência constitucional revela algumas concretizações importantes e relevantes para o juízo a emitir nos presentes autos, quer no que toca ao conceito constitucional de “ perda de direitos civis, profissionais ou políticos ”, quer na densificação do que deve entender-se por “ efeitos necessários ” das penas. 4.1. Destaca-se, em primeiro lugar, a recondução das situações de demissão, baixa de posto, não promoção, suspensão, cancelamento de inscrição, revogação de licença, e não renovação de licença para o exercício de uma determinada atividade ao conceito de “perda de direitos civis, profissionais ou políticos” constante do n.º 4 do artigo 30.º, da Constituição (cfr. os acórdãos n.ºs 91/84, 255/87, 562/2003, 154/2004 e 25/2011, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt ). Ou seja, o fato de em causa estar uma atividade profissional remunerada cujo exercício está dependente da atribuição de uma licença não obsta a que à mesma se aplique a proibição de perda automática de direitos profissionais, visto que esta não se restringe à perda de direitos no contexto de uma determinada carreira profissional, mas abrange, também, os direitos de escolha e de exercício da profissão, assegurados pelo artigo 47.º da Constituição (cfr., neste sentido, o acórdão n.º 25/2011, disponível em www.tribunalconstitucional.pt ). E isto, sublinhe-se, independentemente da questão de saber se, em geral, tal condicionamento administrativo pode ser considerado uma verdadeira restrição ao exercício de profissão, para efeitos de subordinação aos requisitos inscritos no artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição (cfr. o acórdão n.º 154/2004, disponível em www.tribunalconstitucional.pt ). 4.2. Por outro lado, a jurisprudência constitucional vem aceitando a assimilação, proposta por alguma doutrina, entre a proibição dos “ efeitos necessários das penas ” e a proibição dos “ efeitos automáticos ligados à condenação pela prática de certos crimes ” (cfr. os acórdãos n.ºs 202/2000 e 154/2004, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt . , Gomes Canotilho/Vital Moreira , Constituição da República Portuguesa Anotada , vol. I, 4.ª ed. revista, 2007, p. 505, e Pedro Caeiro , “Qualificação da sanção de inibição da faculdade de conduzir prevista no artigo 61.º, n.º 2, alínea d), do Código da Estrada”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal , 1993, p. 565). Posto isto, um ponto importante na delimitação das situações constitucionalmente vedadas à luz do parâmetro em causa é saber se a fixação de sanções acessórias ou a previsão de certo tipo de efeitos opera mecanicamente , não se conferindo ao juiz do processo ou à entidade administrativa competente para o licenciamento de uma atividade o poder de, em concreto, valorar a relação, estabelecida pelo legislador, entre tais efeitos ou sanções, por um lado, e o desvalor da conduta que as motiva, por outro. No acórdão n.º 25/2011 (já mencionado), em que o Tribunal foi chamado a apreciar a validade constitucional da norma constante dos artigos 9.º, n.º 1, alínea e) , e 25.º do Regulamento Municipal do Licenciamento do Exercício e da Fiscalização da atividade de guarda-noturno, quando interpretada no sentido de que a condenação pela prática de crime doloso determina automaticamente a revogação da licença para o exercício dessa atividade, concluiu-se que (o itálico é nosso): «(...) A revogação da licença (...) é um efeito imposto por norma regulamentar, que não deixa qualquer margem de apreciação à entidade administrativa para poder avaliar as circunstâncias do caso concreto e emitir um juízo sobre a idoneidade daquela condenação para fundamentar tal não renovação . Uma vez documentada a condenação por crime doloso e o respetivo trânsito em julgado, nada mais resta à entidade administrativa a não ser determinar a revogação da licença em cumprimento das citadas normas regulamentares. (...)» Por sua vez, no acórdão n.º 154/04 (já mencionado), estavam em causa as condições de acesso e de exercício da profissão de motorista de táxi, concretamente a norma que considerava não idóneo para esse exercício aquele que houvesse sido condenado em pena de prisão efetiva igual ou superior a três anos. Avançou o Tribunal, em tal caso, que (o itálico é nosso): «(...) A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem vindo a eleger como critério para a aplicação desta norma constitucional [o artigo 30.º, n.º 4] a possibilidade de existência, segundo a previsão legal, de juízos de valoração ou ponderação que podem vir a afastar a automaticidade dos efeitos das penas. (...) Não se vê, pois, no caso em análise, onde possa estar a “valoração de uma pena” como requisito para a emissão de certificado de aptidão profissional : não existe previsão de qualquer decisão, sequer administrativa, de apreciação da idoneidade do candidato, funcionando a norma do artigo 4.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 263/98, de 19 de agosto, como um efeito automático de uma pena de prisão efetiva igual ou superior a três anos anteriormente aplicada. (...)» Todavia, não são de todo incomuns casos em que o Tribunal Constitucional, seja por perscrutar a não automaticidade do efeito produzido, seja por detetar uma conexão suficientemente relevante entre o crime praticado e a atividade sob licenciamento, proferiu juízo no sentido da não inconstitucionalidade de certos normativos, considerando não haver aí violação do artigo 30.º, n.º 4, da Constituição (cfr., sem prejuízo do que se dirá infra , os acórdãos n.ºs 363/91 e 522/95, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt ). Por exemplo, apreciando a validade constitucional da norma constante do artigo 21.º, n.º 5, da Lei n.º 173/99, de 21 de setembro, que determina a caducidade da carta de caçador sempre que os respetivos titulares sejam condenados por crime de caça, o Tribunal Constitucional justificou o juízo de não inconstitucionalidade invocando os seguintes argumentos: «(...) A prática de um crime de caça, independentemente da sua gravidade para efeitos da determinação da respetiva pena, ilide, por si só, a presunção de que se mantêm as condições de passagem da carta, ou seja, de que o agente detém os conhecimentos, a aptidão e a adequação comportamental necessárias ao exercício da caça. (...) A circunstância de se tratar de uma infração criminal é suficientemente grave para justificar, na perspetiva do legislador, a reapreciação da situação do agente enquanto titular da carta de caçador, uma vez que tal atividade só pode ser exercida por sujeitos que demonstrem uma específica formação e aptidão, por estar em causa a proteção de valores ambientais com dignidade constitucional. (...)» De forma igualmente impressiva, nos acórdãos n.ºs 291/95, 53/97, 149/2001 e 79/09 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt ), o Tribunal concluiu pela não inconstitucionalidade do artigo 4.º, do Decreto-Lei n.º 124/90, de 14 de abril, na parte em que aí se estatui que à condenação pelo crime de condução sob o efeito de álcool acresce sempre sanção acessória de inibição da faculdade de conduzir. Como se lê no segundo dos arestos mencionados (o itálico é nosso): «(...) A circunstância de ter sempre de ser aplicada essa medida [sanção de inibição da faculdade de conduzir] ainda que pelo mínimo da medida legal da pena, desde que seja aplicada a pena principal de prisão ou multa, não implica, ainda assim, neste caso, colisão com a proibição de automaticidade. A adequação da inibição de conduzir a este tipo de ilícitos revela que a medida de inibição de conduzir se configura como uma parte de uma pena compósita, como se de uma pena principal associada à pena de prisão se tratasse, em relação à qual valem os mesmos critérios de graduação previstos para esta última. Com efeito, a aplicação da inibição de conduzir fundamenta-se, tal como a aplicação da pena de prisão ou multa, na prova da prática do facto típico e ilícito e da respetiva culpa, sem necessidade de se provarem quaisquer factos adicionais. Atenta a natureza da infração, com a inerente perigosidade decorrente dessa conduta , surge como adequada e proporcional a sanção de inibição de conduzir . (...)» O mesmo é dizer, portanto, que, no entender do Tribunal, o artigo 30.º, n.º 4, da Constituição não exclui prontamente previsões sancionatórias rígidas, desde que tais previsões surjam como “razoavelmente proporcionadas” relativamente a todo e qualquer comportamento reconduzível ao tipo legal de crime em causa (cfr., neste sentido, o acórdão n.º 202/2000, disponível em www.tribunalconstitucional.pt ). 5. Seguindo o lastro jurisprudencial sobre o tema, que vem clarificando o sentido da proibição constitucional vertida no n.º 4 do artigo 30.º, da Constituição, não se acompanha o juízo proferido pelo TCAS no sentido da inconstitucionalidade do artigo 8.º, n.º 1, alínea d) , do Decreto-Lei n.º 35/2004, de 21 de fevereiro. Vejamos. 5.1. Não restam dúvidas de que a não renovação do cartão profissional de segurança privado é reconduzível a uma situação de perda de direitos profissionais , para efeitos do disposto no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição. Essa não renovação configura-se como um efeito automático da condenação por um dos crimes elencados no preceito em crise, decorrendo mecanicamente desta. O mesmo é dizer que a entidade administrativa competente para decidir da renovação não goza, nesta matéria, de qualquer margem de apreciação no sentido de poder apurar, casuisticamente, da existência de uma conexão entre a condenação na prática de um determinado crime e a perda do direito profissional em causa. Embora necessária, a falta deste poder casuístico de valoração não é condição suficiente para apurar inequivocamente da inconstitucionalidade do preceito. Determinante é, ainda, que não seja possível antecipar uma ligação abstratamente forte entre o crime praticado e a atividade sob licenciamento, isto é, uma conexão apta a justificar a proporcionalidade do caráter “automático” ou “rígido” do efeito. 5.2. Ora, sendo certo que a solução perspetivada pelo legislador acaba por retirar da prática de um qualquer crime doloso cuja moldura penal abstrata seja superior a três anos de prisão, uma conclusão sobre a inaptidão da pessoa para o desempenho da atividade de segurança privada, só o faz após ter previsto na primeira parte da norma a prática de um crime contra a integridade física, como incompatível com o exercício profissional em causa. Sendo assim, na presente hipótese, existe uma ligação suficientemente forte entre o tipo legal de crime efetivamente preenchido e o tipo de atividade profissional cuja inibição se pretende induzir através da norma sob escrutínio. Basta pensar na importância e no risco que, num Estado de Direito, inerem à atividade de segurança privada, tendo em conta – sobretudo - os meios técnicos de que, sob certo condicionamento, esta pode beneficiar (cfr. os artigos 13.º, 14.º e 15.º, do Decreto-Lei n.º 35/2004, de 21 de fevereiro). Acresce que a restrição não perdura indefinidamente, porquanto, como resulta da parte final da al. d) do n.º 1 do artigo 8.º, do Decreto-Lei n.º 35/2004, de 21 de fevereiro, sempre o regime aí previsto não prejudica a hipótese de reabilitação judicial, na medida em que aí se afirma expressamente «…, sem prejuízo da reabilitação judicial ». A conexão enunciada afasta, portanto, a existência de uma desproporção manifesta entre “ a via que foi escolhida para a realização do interesse público e a medida de realização desse mesmo interesse ” (cfr. Maria Lúcia Amaral , A forma da República , reimpressão da 1.ª ed., Coimbra Editora, 2012, p. 189), obstando à violação do princípio da proibição do excesso e, por conseguinte, do direito, liberdade e garantia vertido no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição. 6. Neste sentido, e atendendo especificamente ao crime por cuja prática o recorrente foi condenado, conclui-se que a norma constante do artigo 8.º, n.º 1, alínea d) e artigo 10.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 35/2004, de 21 de fevereiro, não viola o princípio da não automaticidade das penas, consagrado no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição. III. Decisão 7. Pelo exposto, decide-se: a) Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 8.º, n.º 1, alínea d) , conjugada com o n.º 3 do artigo 10.º, do Decreto-Lei n.º 35/2004, de 21 de fevereiro, quando interpretada no sentido de que a condenação pela prática de um crime de violência doméstica determina automaticamente o indeferimento do pedido de renovação do cartão profissional de segurança privado; b) Por conseguinte, conceder provimento ao recurso, determinando a reformulação da decisão recorrida em conformidade com o presente juízo de não inconstitucionalidade. Sem custas. Lisboa, 11 de novembro de 2014 - José Cunha Barbosa - Maria de Fátima Mata-Mouros - Maria Lúcia Amaral - Joaquim de Sousa Ribeiro
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