Tribunal Constitucional
TC, acórdão n.º 256/20, 29-Abril-2020 (Pedro Machete), 999/19,
Data: 29 Abril 2020
Acórdão n.º: 256/20
Processo n.º: 999/19
Fonte: tribunalconstitucional
Relator: Pedro Machete
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Citação: TC, acórdão n.º 256/20, 29-Abril-2020 (Pedro Machete), 999/19,
- Jurisprudência
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- 999/19
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A
Decisão
ACÓRDÃO Nº 256/2020
Processo n.º 999/19
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., o primeiro interpôs recurso de constitucionalidade ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional – LTC), da decisão de 8 de maio de 2019 que julgou procedente a ação administrativa proposta pelo aqui recorrido com vista à invalidação do despacho do Comandante-Geral da Guarda Nacional Republicana (GNR) que declarou extinto o seu vínculo funcional à Guarda. Com efeito, nessa decisão, foi recusada aplicaçãoà norma do artigo 98.º, alínea b), do Decreto-Lei n.º 30/2017, de 22 de março, que consagra o Estatuto dos Militares da GNR (EMGNR), por se entender que a mesma viola o artigo 30.º, n.º 4, da Constituição.
Admitido o recurso e subidos os autos, foram as partes notificadas para alegar. Apenas o Ministério Público apresentou alegações, tendo, a final, formulado as seguintes conclusões:
«2.ª) O artigo 30.º, n.º 4, da Constituição, dispõe que “Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos”.
3.ª) Este preceito constitucional, como documenta a história legislativa e a exegese, jurisprudencial e doutrinária largamente dominantes, visa proscrever os “efeitos automáticos das penas” (maxime, criminais).
4.ª) O Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana [EMGNR], aprovado pelo Decreto-Lei n.º 30/2017, de 22 de março, no seu artigo 98.º (Cessação do vínculo), na alínea b), dispõe o seguinte: “Cessa definitivamente o vínculo à Guarda, ficando sujeito às obrigações decorrentes da Lei do Serviço Militar, o militar que (…])b) Tenha sido condenado na pena acessória de proibição do exercício de função”.
5.ª) A aplicação da norma jurídica expressa por esta norma legal é “automática”: verificado o facto operativo (tipificado de modo unívoco, “Tenha sido condenado na pena acessória de proibição do exercício de função”), ipso jure, dele se deduz a consequência legalmente estabelecida (igualmente tipificada de modo unívoco, “Cessa definitivamente o vínculo à Guarda (...)”).
6.ª) Ou seja, esta norma jurídica é aplicável segundo uma lógica de subsunção (verificados os pressupostos legais, deles é deduzido o efeito jurídico extintivo da relação administrativa) e não de uma lógica de ponderação (consideração do peso relativo das razões, pró e contra, subjacentes ao caso).
7.ª) Mais ainda, a aplicação da norma jurídica expressa por este enunciado legal não outorga qualquer margem de apreciação ao aplicador, seja na determinação dos pressupostos legais, seja na determinação da consequência jurídica.
8.ª) Tal habilitação legal, em conformidade com a sua essência, é concretizada através da prática de um ato administrativo estritamente vinculado, no qual à verificação da “condenação na pena acessória de proibição do exercício de função”, se faz necessariamente corresponder o efeito extintivo “Cessa definitivamente o vínculo à Guarda”.
9.ª) Por conseguinte, a norma jurídica constante do artigo 98.º (Cessação do vínculo), na alínea d), do EMGNR, infringe o preceituado no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição, no qual se dispõe que “Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos” e, por conseguinte, é materialmente inconstitucional (art. 277.º, n.º 1).
10.ª) É relevante no caso em apreço a pronúncia do Tribunal Constitucional, em Plenário, tirada em sede do artigo 82.º (Processo aplicável à repetição do julgado), no acórdão n.º 165/86, proc.º n.º 7/86, de 20 de abril, de “declara[ção] com força obrigatória geral, [de] inconstitucionalidade do artigo 37.º, nº 1, do Código de Justiça Militar, aprovado pelo Decreto-Lei nº 141/77, de 9 de Abril, por violação do artigo 30.º, nº 4, da Constituição.”»
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
2. O presente recurso respeita à apreciação da constitucionalidade da norma recusada aplicar pelo tribunal a quo, que é extraída do artigo 98.º, alínea b), do EMGNR, segundo a qual «[c]essa definitivamente o vínculo à Guarda, ficando sujeito às obrigações decorrentes da Lei do Serviço Militar, o militar que: b) Tenha sido condenado na pena acessória de proibição do exercício de função». Tal recusa fundou-se no entendimento de que a norma em causa colide com o disposto no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição: nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos.
Preliminarmente, deve referir-se que a questão de inconstitucionalidade em análise não é inteiramente nova para o Tribunal Constitucional. Pelo contrário, questão com alguma similitude, que implicava a perda de direitos profissionais dos militares, já foi objeto de decisão pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 165/86 (acessível, assim como os demais adiante citados, a partir da ligação www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos), cuja fundamentação a decisão ora recorrida transcreveu em parte e acolheu.
De todo o modo, o caso em apreciação nos presentes autos apresenta algumas especificidades que não permitem uma transposição, sem mais, nem da fundamentação nem da decisão constante daquele acórdão. Aí apreciou-se anorma do Código de Justiça Militar de 1977 que impunha a demissão de oficial ou sargento dos quadros permanentes ou de praças em situação equivalente como efeito necessário da sua condenação por certos crimes, nomeadamente os previstos no artigo 37.º, n.º 1, desse diploma; no presente caso, diversamente, está em causa um efeito necessário (a cessação definitiva do vínculo à GNR) da condenação na pena acessória de proibição do exercício de função.
Destarte, importa começar por analisar o alcance do artigo 30.º, n.º 4, da Constituição e, só depois, apreciar a norma objeto do presente recurso à luz de tal parâmetro.
3. O artigo 30.º, n.º 4, foi introduzido na Constituição pela revisão constitucional de 1982 tendo em vista acolher o entendimento constante do então recente Código Penal de 1982 segundo o qual «nenhuma pena envolve, como efeito necessário, a perda de direitos civis, profissionais ou políticos». Trata-se de um preceito inspirado no Projeto de Código Penal de 1963, da autoria de Eduardo Correia, que acolhe o princípio político‑criminal de luta contra o efeito estigmatizante, dessocializador e criminógeno das penas. Nesse sentido, afirma-se no Acórdão n.º 154/2004:
«Sobre as disposições aprovadas em 1982 escreveria depois o autor (Eduardo Correia, “O novo Código Penal Português e Legislação Complementar”, Jornadas de Direito Criminal, Fase I, Centro de Estudos Judiciários, pág. 29):
“O Código, aliás em consonância com a Constituição, fez desaparecer o efeito infamante das penas, não considerando seu efeito automático a perda de direitos civis, políticos e profissionais (artigo 65º). Temos, assim, que todo o labéu, todo o estigma jurídico, se dilui, ficando apenas a possibilidade autónoma ou paralela de cominar penas acessórias.”
Inspirando-se no anteprojeto de Eduardo Correia, Jorge Miranda propusera a consagração deste princípio no projeto de Constituição que apresentara em 1975, e insistiu nele, com sucesso, a propósito de Um Projeto de Revisão Constitucional (Coimbra, 1980, pág. 35). Aí escreveu:
“O novo n.º 4 tem por fonte o artigo 76º do anteprojeto de parte geral do Código penal, de autoria de Eduardo Correia. Já constava do meu projeto de Constituição de 1975.”» (n.º 6)
Com o preceito em análise o legislador constituinte visou impedir que à condenação em certas penas acresça, de modo automático ou mecânico, por efeito direto da lei, uma outra sanção da mesma natureza, independente de decisão judicial. Como se refere no Acórdão n.º 376/2018:
«[Exclui-se] que a perda de direitos civis, profissionais ou políticos seja configurada, pelo legislador infraconstitucional, como um efeito ope legis aquando da aplicação de uma dada pena, em detrimento de uma decisão que pondere as circunstâncias concretas de cada caso. Só neste quadro a pena é contida na sua exata base de legitimação constitucional, e só assim, algum tipo de projeção dessa circunstância (a aplicação de uma pena) é constitucionalmente tolerada, porque deixa de envolver, “como efeito necessário”, a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos. Assim se observa autonomamente o princípio da culpa e da proporcionalidade na produção de qualquer efeito desvalioso, ou de pendor sancionatório, conexionado com a anterior aplicação de uma pena (cfr., entre outros, Acórdãos n.ºs 284/89, 442/93 e 748/93, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt) ou condenação pela prática de um crime, a esta incidência estendendo teleologicamente o âmbito protetivo do artigo 30.º, n.º 4 (cfr., entre outros, os Acórdãos n.º 91/84, 282/86, 284/89, 522/95, 327/99, 76/00, 87/00, 405/01 e 562/03, 239/2008, 368/2008)» (n.º 11)
Está em causa prevenir o que poderia ser perspetivado como uma “morte” civil, profissional ou política do cidadão condenado, impeditiva da sua reinserção social após o cumprimento da pena (no mesmo sentido, v. também os Acórdãos n.ºs 16/84, 310/85, 75/86, 94/86, 284/89, 748/93, 522/95, 327/99, 202/2000 e 262/2003). Com efeito, a proibição da automaticidade dos efeitos das penas pretende obviar a que, por mero efeito da lei, se produzam efeitos que, sem atender aos princípios da culpa e da proporcionalidade, envolvam a perda de direitos civis, profissionais e políticos. Nesse sentido, afirmou-se no Acórdão n.º 239/2008:
«Na verdade, ao estabelecer-se um nexo consequencial entre a aplicação duma pena e a perda de direitos civis, profissionais ou políticos, alguns dos princípios que presidem à aplicação das penas devem também estar presentes na aplicação daquelas medidas, nomeadamente os princípios da culpa, da necessidade e da proporcionalidade, pelo que é imprescindível a mediação de um juízo que avalie os factos praticados e pondere a adequação e a necessidade de sujeição do condenado a essas medidas, não podendo as mesmas resultarem ope legis da simples condenação penal (vide, neste sentido, DAMIÃO DA CUNHA, em “Constituição Portuguêsa anotada”, dirigida por Jorge Miranda e Rui Medeiros, tomo I, pág. 337-338, da ed. de 2005, da Coimbra Editora).» (n.º 2 da Fundamentação)
Do mesmo modo, refere-se no Acórdão n.º 748/2014:
«Ora, tal proibição, como é consabido, pretende impedir que haja um efeito automático de condenação penal nos direitos civis, profissionais e políticos do arguido. A sua justificação é simultaneamente a de obviar ao efeito estigmatizante e criminógeno das penas e de impedir a violação dos princípios da culpa e da proporcionalidade, que impõem uma ponderação, em concreto, da adequação do efeito em causa à gravidade do ilícito, afastando a possibilidade de penas fixas (cfr. o acórdão n.º 461/2000, disponível em www.tribunalconstitucional.pt)» (n.º 4)
E, ainda, no Acórdão n.º 132/2018:
«É este o sentido em que deve ser lido o artigo 30.º, n.º 4, da CRP. Ou seja, e em síntese, ele “(…) não proíbe a consagração de penas que se traduzam na perda de direitos civis, mas sim que da simples condenação anterior o legislador retire automaticamente esse efeito, sem mediação do julgador” (Acórdão n.º 53/2011; v. ainda o Acórdão n.º 239/2008), “(…) com tal preceito constitucional pretendeu-se proibir que, em resultado de quaisquer condenações penais, se produzissem automaticamente, pura e simplesmente ope legis, efeitos que envolvessem a perda de direitos civis, profissionais e políticos e pretendeu-se que assim fosse porque, em qualquer caso, essa produção de efeitos, meramente mecanicista, não atenderia afinal aos princípios da culpa, da necessidade e da jurisdicionalidade, princípios esses de todo inafastáveis de uma lei fundamental como a Constituição da República Portuguesa que tem por referente imediato a dignidade da pessoa humana” (Acórdão n.º 284/89).» (n.º 2.2 da Fundamentação)
Assim, para efeitos do artigo 30.º, n.º 4, da Constituição, constitui efeito necessário ou automático da pena todo aquele que decorre diretamente da lei (efeito ope legis), todo aquele que não pressupõe que se façam quaisquer juízos de valoração ou de ponderação face à situação concreta e todo aquele que, consequentemente, não permite a aferição da culpa face à gravidade do ilícito praticado.
A par destes aspetos, deve dar-se conta de que, em concretização do alcance do preceito, a jurisprudência constitucional tem entendido que os efeitos necessários das penas se estendem também, por identidade de razão, aos efeitos automáticos ligados à condenação pela prática de certos crimes. Nesse sentido, afirma-se no Acórdão n.º 376/2018:
«Ora, neste âmbito, o Tribunal Constitucional tem reiteradamente admitido a aplicação do n.º 4 do artigo 30.º da CRP a casos nos quais a perda de direitos é configurada, pelo legislador, como um efeito necessário da condenação pela prática de um crime, aderindo, pois, ao entendimento de que esse parâmetro normativo não se encontra limitado às normas que preveem um efeito automático decorrente da aplicação de uma pena (cfr., entre outros, os Acórdãos n.º 91/84, 282/86, 284/89, 522/95, 327/99, 76/00, 87/00, 405/01 e 562/03, 239/2008, 368/2008).» (n.º 11)
Por outro lado, considera-se que as razões da consagração deste preceito valem tanto para o direito penal, como para os demais domínios sancionatórios de natureza administrativa. Como resulta do Acórdão n.º 368/2008, tal preceito «visa salvaguardar que qualquer sanção penalizadora da conduta punida, independentemente da sua natureza e medida, resulte da concreta apreciação, pela instância decisória, do desvalor dessa conduta, por confronto com os padrões normativos aplicáveis» (n.º 5; em idêntico sentido, v., por exemplo, os Acórdãos n.ºs 327/99, 239/2008 e 25/2011).
Finalmente, no domínio da carreira dos militares da GNR ou de carreiras profissionais próximas, é de mencionar a jurisprudência constitucional quanto à perda de direitos profissionais. Assim, o Tribunal Constitucional tem entendido que integram o conceito de “perda de direitos profissionais”, para efeito do disposto no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição, as seguintes situações:
– Demissão (Acórdão n.º 165/86 que, na sequência dos Acórdãos n.ºs 16/84 e 127/84, declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do Código de Justiça Militar de 1977, que impunha a demissão de oficial ou sargento dos quadros permanentes ou de praças em situação equivalente como efeito necessário da sua condenação pelos crimes aí referidos);
– Baixa de posto (Acórdão n.º 255/87, que julgou inconstitucional a norma do Código de Justiça Militar, que impõe a baixa de posto dos oficiais ou sargentos que pertençam ao quadro de complemento como consequência da condenação por determinados crimes);
– Entraves à progressão na carreira (Acórdão n.º 562/2003, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do EMGNR então vigente, que impedia a promoção a determinado posto, como consequência automática da aplicação de determinadas sanções disciplinares).
4. A sentença recorrida acolheu os fundamentos do mencionado Acórdão n.º 165/86, que apreciou a constitucionalidade do artigo 37.º, n.º 1, do Código de Justiça Militar:
«A condenação de oficial ou sargento dos quadros permanentes ou de praças em situação equivalente por crime de ultraje à bandeira nacional, deserção, falsidade, infidelidade no serviço, furto, roubo, prevaricação, corrupção, burla e abuso de confiança produz a demissão, qualquer que seja a pena imposta.»
No referido Acórdão pode ler-se:
«[O] militar condenado em qualquer das penas referidas no artigo 37.º, nº 1, do Código de Justiça Militar fica automaticamente, e independentemente de condenação específica, privado do seu lugar no respetivo quadro — isto é, do seu «emprego» —, do seu título profissional e, bem assim, do direito a quaisquer recompensas e pensões.
Não há, assim, a menor dúvida de que o preceito questionado liga às penas nele previstas um efeito automático e necessário, que se traduz na perda de direitos profissionais — e, antes de mais, logo do direito profissional verdadeiramente nuclear [e fundamental (cf. artigos 53º e 47.º, nº 2, da Constituição)], que é o direito ao próprio emprego, legitimamente obtido.
6 — Ora, um resultado destes está absolutamente interdito pelo artigo 30.º, nº 4, da Constituição.
[…]
Tudo isto — que agora se resume — foi já amplamente exposto no Acórdão nº 16/84 deste Tribunal. Como aí se salientou, “no fundo, o nº 4 do artigo 30º da Constituição deriva, em linha reta, dos primordiais principais definidores da atuação do Estado de direito democrático que estruturam a nossa Lei Fundamental, ou sejam os princípios do respeito pela dignidade humana (artigo 1.°) e os do respeito e garantia dos direitos fundamentais (artigo 2.°)”. E continua-se: “Daí decorressem os grandes princípios constitucionais de política criminal: o princípio da culpa; o princípio da necessidade da pena ou das medidas de segurança; o princípio da legalidade e o da jurisdicionalidade da aplicação do direito penal; o princípio da humanidade; e o princípio da igualdade”. “Ora” conclui--se “se da aplicação da pena resultasse, como efeito necessário, a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos, far-se-ia tábua rasa daqueles princípios, figurando o condenado como um proscrito, o que constituiria um flagrante atentado contra o princípio do respeito pela dignidade da pessoa humana”»
5. No caso vertente, a alínea b) do artigo 98.º do EMGNR diz respeito ao efeito de cessação definitiva do vínculo à Guarda do militar que tenha sido condenado na pena acessória de proibição do exercício de função prevista no artigo 66.º do Código Penal:
Importa ainda considerar os efeitos de tal sanção:
Note-se que a pena acessória de proibição do exercício de função por certo período não se reconduz aos efeitos da condenação na pena principal, correspondendo antes a uma verdadeira pena e, como tal, necessariamente ligada à culpa do agente. Trata-se de pena aplicada, em simultâneo – mas não automaticamente – com a aplicação de uma pena principal – e pressupondo esta última –, visando proteger determinados interesses colocados em perigo com a prática do crime. Por isso, é essencial que na sentença que a imponha também se especifiquem os respetivos fundamentos de facto e de direito.
Como observa Figueiredo Dias, o que faz desencadear a pena acessória é a violação grave de deveres relativos à função exercida pelo agente ou a consequência que a prática do crime acarreta do ponto de vista funcional, pela indignidade manifestada na prática do crime ou pela perda de confiança necessária ao exercício da função que dele deriva (cfr. Autor cit., Direito Penal Português – Parte Geral, II – As Consequências Jurídicas Do Crime, Editorial Notícias, Lisboa, 1993, p. 168). É porque o crime em causa se projeta negativamente na função que se justifica a proibição de exercício de função. Este pressuposto acresce à prática do crime e pode determinar autonomamente a aplicação da pena acessória. A sanção principal – condenação em pena de prisão superior a 3 anos – constitui o seu pressuposto formal; o pressuposto material é a conexão relevante do crime praticado com a função, nos termos previstos nas três alíneas do artigo 66.º, n.º 1, do Código Penal (cfr. Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 3.ª ed., Universidade Católica Editora, Lisboa, 2015, anotações 2 e 3, ao artigo 66.º, p. 344).
Já a suspensão do exercício de função prevista no artigo 67.º do Código Penal – o «arguido definitivamente condenado a pena de prisão que não for demitido disciplinarmente de função pública que desempenhe, incorre na suspensão da função enquanto durar o cumprimento da pena» (n.º 1) – tem uma natureza diferente. Neste caso, trata-se de um efeito material da pena que «é conatural à própria restrição da liberdade inerente à execução da pena de prisão» (assim, v. Pinto de Albuquerque, ob. cit., anotação 1 ao artigo 67.º, p. 345; ou Figueiredo Dias, ob. cit., p. 171: «trata-se […] de um efeito material inarredável da pena de prisão […], não de um efeito jurídico da pena, nem, muito menos, de uma pena acessória»).
6. As consequências de condenações penais têm vindo a ser acomodadas nos estatutos pessoais dos trabalhadores e funcionários da Administração Pública, sem prejuízo da respetiva autonomia em matéria disciplinar e do princípio da independência do procedimento disciplinar.
Em particular, no que respeita aos militares da GNR, os seus sucessivos estatutos têm previsto as situações de inatividade temporária e de cessação do vínculo.
A primeira é uma das situações em que o militar da Guarda no ativo pode estar em relação à prestação de serviço, nomeadamente por motivos criminais ou disciplinares: traduz-se no não exercício de funções por determinado tempo, produzindo os efeitos previstos na lei (v. os artigos 70.º, alínea b), 73.º, n.º 1, alínea b), e 74.º, n.º 3, todos do EMGNR de 2017; cfr. os preceitos homólogos do EMGNR objeto do Decreto-Lei n.º 297/2009, de 14 de outubro: respetivamente, os artigos 74.º, alínea c), 77.º, n.º 1, alínea b), e 78.º, n.º 3; e do EMGNR objeto do Decreto-Lei n.º 265/93, de 31 de julho: respetivamente, os artigos 95.º, alínea b), e 97.º, alínea b) ).
Relativamente à cessação do vínculo, é importante referir que o atual EMGNR a prevê quer por força da condenação na pena (criminal) acessória de proibição do exercício de função, quer em resultado da aplicação da pena disciplinar de separação de serviço (artigo 98.º, alíneas b) e d), respetivamente; idêntica situação já se verificava no âmbito do EMGNR de 2009: artigo 102.º, alíneas b) e d) ). Com efeito, o Regulamento de Disciplina da GNR, aprovado em anexo à Lei n.º 145/99, de 1 de setembro, consagrou como pena disciplinar expulsiva a «separação de serviço». E esta era já a designação, no âmbito do EMGNR de 1993, da pena disciplinar expulsiva determinante do «abate aos quadros» da Guarda (cfr. o artigo 94.º, alínea d) ). Nesse diploma, a pena acessória que também determinava a cessação do vínculo à GNR era a demissão (ou a expulsão; cfr. ibidem, a alínea b) ).
Na redação originária do Código Penal, previa-se a demissão, a título de pena acessória para o crime praticado por funcionário «com flagrante e grave abuso da função que exerce ou com manifesta e grave violação dos deveres que lhe são inerentes» ou, ainda, quando o crime, embora praticado fora do exercício da função pública, revele que o agente é incapaz ou indigno de exercer o cargo ou implique a perda de confiança geral necessária ao exercício da função» (cfr. o artigo 66.º, n.ºs 1 e 2, na redação do Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de setembro; sobre a qualificação de tal demissão como pena acessória, v. o Acórdão n.º 353/86, n.º 3 da Fundamentação).
Ora, uma das inovações importantes da reforma penal de 1995, nesta matéria, traduziu-se na introdução de um mínimo e um máximo para a proibição do exercício de função – limites dentro dos quais deve ser fixada tal pena acessória em função da culpa do agente –, reforçando, desse modo, a respetiva natureza de pena criminal (cfr. a nova redação dada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, àquele artigo transcrito supra no n.º 5; cfr. também as críticas dirigidas ao regime anterior por Figueiredo Dias, ob cit., pp. 178-180, em especial, no tocante à duração das penas acessórias). Por outras palavras, a reforma penal de 1995 eliminou a cessação do vínculo como pena acessória aplicável aos funcionários, substituindo-a pela possibilidade de imposição de uma proibição meramente temporária de exercício de função.
7. A proibição consagrada no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição deve, por identidade de razão, ser aplicada também às penas acessórias, e, de modo particular, à pena acessória de proibição do exercício de função: não só está em causa uma verdadeira “pena”, como os motivos de proibição da automaticidade dos efeitos das penas, nomeadamente no que se refere ao seu carácter estigmatizante, valem da mesma forma para as penas acessórias.
No caso presente, o carácter consequencial e automático da extinção definitiva do vínculo à Guarda, decorrente da condenação na pena acessória de proibição – temporária, recorde-se – do exercício de função, afigura-se ser um efeito ope legis e necessário que impede, em definitivo, o agente de continuar a sua atividade profissional fundada no vínculo existente à data da condenação (cfr. as conclusões 6.ª a 8.ª das alegações do Ministério Público). Nessa medida, aquele efeito extintivo apresenta-se como um plus relativamente ao mal da pena acessória e que, sem dúvida alguma, pode perturbar a readaptação social do condenado. E isto acontece sem que se atenda ao princípio da culpa e ao princípio da proporcionalidade.
Com efeito, o artigo 98.º, alínea b), do EMGNR, ao consagrar a cessação definitiva do vínculo à Guarda no seguimento da condenação numa pena acessória de proibição do exercício de função, acaba por ultrapassar o sentido desta última, uma vez que, nos termos do artigo 66.º, n.º 1, do Código Penal, tal pena se apresenta sempre com um carácter temporário, e não necessariamente expulsivo. A norma daquele preceito acaba, assim, por esvaziar, em larga medida, as ponderações realizadas em sede de fixação da medida da pena acessória, porquanto transforma esta última sempre em mero pressuposto de uma consequência única, necessária e de aplicação automática: a cessação definitiva do vínculo à GNR.
E isto acontece sem que se consiga divisar um qualquer fundamento razoável para tal.
Na verdade, não se descortinam quaisquer fundamentos válidos, à luz do interesse público, para que, no que respeita aos militares da GNR, se converta a pena de proibição do exercício de função, que tem um carácter temporário, numa pena de cessação definitiva do vínculo, pondo em causa os princípios fundamentais da política criminal, como o princípio da culpa, o princípio da necessidade da pena e o princípio da jurisdicionalidade da aplicação do direito penal. Tanto mais, que a aplicação de tal sanção acessória não só se pode enquadrar no âmbito do EMGNR enquanto inatividade temporária, como não preclude a possibilidade de exercer o poder disciplinar e de eventualmente, caso a gravidade da conduta do militar o justifique, aplicar em sede disciplinar uma sanção expulsiva: a separação do serviço.
Conclui-se, por isso, que a norma da alínea b) do artigo 98.º do EMGNR, ao determinar que o militar que tenha sido condenado na pena acessória de proibição do exercício de função cessa definitiva e de forma automática (ou seja, sem qualquer mediação ponderadora numa decisão administrativa concreta) o vínculo à GNR, é incompatível com o disposto no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 30.º, n.º 4, da Constituição, a norma do artigo 98.º, alínea b), do Decreto-Lei n.º 30/2017, de 22 de março, correspondente ao Estatuto dos Militares da GNR, segundo a qual cessa definitivamente o vínculo à Guarda o militar que tenha sido condenado na pena acessória de proibição do exercício de função; e, em consequência,
b) Negar provimento ao recurso.
Sem custas.
Lisboa, 29 de abril de 2020 - Pedro Machete - Fernando Vaz Ventura - Mariana Canotilho - Manuel da Costa Andrade
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